A Suprema Felicidade, de Arnaldo Jabor (Brasil, 2010)
por Andrea Ormond

Os vivos e os mortos

Constatado o fim, e sendo o passado uma ilha na qual os sonhos se refazem, entrar em contato com cada um deles – ou pelo menos os que a memória reteve – significa estender o tapete vermelho a um filão artístico por excelência. Cinematográfico, literário, pictórico, o memorialismo crava sua faca esfumaçada, lâmina quente. E a lembrança – mãe dos mitos, inclusive dos que não presenciamos –, faz com que memória e criação tornem-se gêmeas, incestuosas. Uma sem a outra se aniquila, magras, naus sem rumo. E à medida em que o absoluto não existe – o corvo grita “nevermore, nevermore” –, sangrada a dureza de que algo se foi, nunca volta, nada mais terapêutico do que dar-lhe a benção do renascimento, da segunda vinda. É esta a epígrafe de A Suprema Felicidade. Não por acaso, abrem os créditos o último terceto do poema de Drummond (“Mas as coisas findas,/ muito mais que lindas,/ essas ficarão.”). Poderia ter adicionado o quarteto de outro, a explicar a inexorabilidade do primeiro: “O filho que não fiz/ hoje seria homem./ Ele corre na brisa,/ sem carne, sem nome.” Sim, pois a incompletude, o silêncio, também reverberam ao lado da felicidade que, suprema ou não, há de se, quem sabe, buscar. 

Reconstruindo o Rio de Janeiro em três núcleos, o roteiro do diretor e de Ananda Rubinstein coloca o protagonista Paulo em idades diferentes: aos 8 (Caio Manhente), aos 13 (Michel Joelsas), aos 18 (Jayme Matarazzo). Neste último encontram-se os acertos do filme, sobretudo pela trama da mãe (Madam, Maria Luísa Mendonça) e filha dançarina (Marilyn, Tammy di Calafiori), acompanhado pelo episódio da ninfomaníaca (Deise, Maria Flor), alucinada pela morte dos pais, vagando em um casarão abandonado. Maria Luísa, rodrigueana, possessa como a cafetina da garota que leva vida dupla, Marilyn de cabelos descorados – defendida com graça por Calafiori. Aqui não se encontram traços de idealização: aponta-se a relação atormentada das duas, a crueldade da mãe que, no cúmulo do narcisismo psicótico, oferece a própria cria ao cadafalso, vitimizando-se em seguida. Em Deise, por sua vez, desperta interesse o alheamento, a oferta do sexo, misturados ao clima de total insanidade. Ponto positivo para o uso da nudez, esforço que não se vê ultimamente. Propositada, poética, contornando o entojo distímico desta era em que o gozo anda próximo do medo. Interessante, ainda, o melhor amigo de Paulo enveredar pela experiência gay, em plena boemia hetero – mesmo que o olhar vidrado retome aquela falta de atenção e incorra na artificialidade.

Aos arqueólogos de plantão, convém ressaltar que os corredores do palacete lembram vagamente o cenário de Toda Nudez Será Castigada (1973), direção de Jabor. Em uma alegoria, poderíamos olhar para o canto da tela e darmos de cara com Darlene Glória, urrando o profético “Herculano, quem te fala é uma morta!”. De qualquer modo, ao invés do gravador e do suicídio de 1973, a câmera mantém algum lado espectral, dando ênfase aos retratos da mãe e ao consultório do pai da vênus. A esta altura o leitor já deve ter percebido que a grande persona oculta do filme atende pelo nome de Nelson Rodrigues. Ele está em Madam, Marilyn e Deise; nos cegos que tentam atacar o menino de 8 anos quando a mãe consulta-se com vidente; nas prostitutas de carnes tristes, em prostíbulo qualquer; no belo adágio “o sábado é uma ilusão”, dito pelo comprador de jornais (Emiliano Queiroz) ao avô de Paulo (Marco Nanini). Batizado logicamente de “Noel”, casado com a polaca (Elke Maravilha), deleiteia pelo espírito do Rio jocoso, chapéu panamá, sapato bicolor, anel no dedo mínimo. Adepto da avenida Rio Branco, comete pérolas como dar goiaba a papagaio, recitar Olavo Bilac, enfronhar-se em delírio pelas visões de corsos e notícias da gripe espanhola – quando perde a lucidez, idoso –,  e dizer o inesquecível “não sei o que é, mas toda vez que eu falo da Lapa eu fico tonto”. Eis a non chalance carioca, código oculto, que nem todos formulam.

Há outros tantos momentos do filme, porém, que vão em caminho oposto às redenções acima, contrariando a premissa da não-idealização. Sente-se no ar uma falsa euforia, a elegia simples, o fato de que filmicamente não atingem o esperado. Bené (João Miguel) – pipoqueiro com traços do Amigo da Onça, de Péricles – repete tiradas cômicas de salão para deixar claro o moto de alegria dos tempos de infância e juventude de Paulo. Surgem cordões de carnaval esporádicos, picardias banais no colégio de padres, números de música em que o onírico dorme sonoramente, Amarcord que não se alcança. Entende-se que algumas intenções poderiam ter ido longe, mas permaneceram frustradas pelas circunstâncias.

Em cena chave, mãe (Sofia, Mariana Lima) e pai (Marcos, Dan Stulbach) de Paulo discutem, Marcos rasga a alça do vestido de Sofia no típico machismo obtuso. O seio de Sofia à mostra, o perdão do marido ajoelhado, a mulher tal como a Madona, dor e choro seriam melhor explorados houvesse anteriormente uma certa crueldade das ruas, da espécie que fez de Darlene Glória e de Paulo Porto a quintessência do amor culpado e doentio – porém, a toda prova, amor. Na mesma linha, a remontagem do Rio de Janeiro das décadas de 40 e 50 comete deslizes. A escapadela do Hotel Méridien – construído anos depois – prédio alto, indefectível, na orla da praia. Idem as danças de rua coreografadas, gestos esquemáticos, esquecida a espontaneidade necessária. Acaso se optasse por uma abordagem crua, sem o estilo de grande produção – apuro no vestuário, nas internas, nos objetos de cena, no glacê – deixas do tipo sequer ressoariam.

Em todos os mortos, portanto, que lá estão e por nós esperam, a nota trágica da impossibilidade de se saber se de fato lá estão e se de fato nos esperam pode ser manipulada por estratégias como a ora apresentada. Neste caso, imperfeita, múltipla de enredos que dificultam ao espectador a possibilidade de se agradar e torcer por um deles. Mas baús de ossos pululam e enlevam, não temei. Célebre deles foi escavado por Pedro Nava, o amigo próximo de Drummond e que, coincidentemente, suicidou-se no bairro da Glória – um dos recantos sensoriais que o avô Noel não tardaria o mínimo instante em saudar.

Novembro de 2010

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