in loco - festival de sundance 2008
Índios de Sundance
por Fellipe Gamarano Barbosa
colaboração especial para a Cinética


Nos anos recentes, a competição americana de Sundance vem consagrando com certa consistência filmes sobre minorias étnicas, muitas vezes dirigidos por cineastas brancos e bem alimentados. Alguns exemplos são Maria Cheia de Graça, de Josh Marston, Raising Victor Vargas, de Peter Sollet, Man Push Cart, de Ramin Bahrani , Half Nelson, de Ryan Fleck e Anna Bogen, e Padre Nuestro, de Chris Zalla. Esse ano, alguns dos filmes mais discutidos no festival ratificaram o fenômeno – Ballast, Sugar e Sleep Dealer.

Não há crítica aqui; é apenas uma observação que merece análise. Pessoalmente, acho Raising Victor Vargas um dos filmes mais interessantes do recente cinema independente americano ao combinar uma dramaturgia clássica e precisa com um tratamento quase etnográfico do sujeito. A história de amor, bastante linear, parece mais um pretexto para registrar a existência daquelas pessoas/personagens do que um fim em si mesma. O que me chama a atenção no belo filme de Sollet é a delicadeza no tratamento de seus personagens latinos, cujos problemas ele procura compreender e dramatizar.

Discutir a intenção de um diretor é uma tarefa complicada pois não existe evidência e objetividade, apenas os sentimentos de um espectador virgem. A pergunta-chave é se existe de fato preocupação e investimento do diretor em relação ao seu sujeito, ou se o filme em questão é fruto de um oportunismo calculado do realizador ao reconhecer uma tendência e procurar circunscrever seu trabalho dentro da mesma – comprometendo, com isso, a própria definição de cinema independente.

Essa tendência não cria filmes bons ou ruins; ela cria filmes diferentes: bons E ruins. Nesse caso, a etiqueta pejorativa "filme de Sundance”, atribuída ao "gênero" independente do cinema norte-americano, é muitas vezes injusta e imprecisa, por não se aplicar a todos os filhos de Redford. Basta analisarmos os três filmes citados da edição deste ano.

***

Ballast, de Lance Hammer (EUA, 2008)
Sugar, de Anna Boden e Ryan Fleck (EUA, 2008)

Personagens a serviço dos diretores / diretores a serviço dos personagens

Nas palavras do diretor Lance Hammer, a história em Ballast é subserviente à locação. A preocupação do diretor é de registrar um lugar: o delta do Mississippi, região absolutamente desolada onde as distâncias entre vizinhos são estradas sem fim. A história é mínima: uma mulher foge com o filho para a casa do ex-marido, que recentemente cometeu suicídio. Na casa ao lado, o irmão gêmeo do falecido tenta se recuperar também do suicídio. O drama começa quando essa grande distância (física e emocional) é drasticamente diluída entre dois cunhados que se odeiam e que precisam recomeçar suas vidas.

Hammer procura maximizar o potencial cinematográfico e imagético de sua pequena situação dramática. No entanto, ao subordinar seus personagens ao registro de um lugar e tempo, o diretor acaba tornando transparentes suas influências e intenções estéticas – comprometendo a integridade do elemento humano filmado.

Hammer navega uma linha perigosa entre forma e conteúdo, objeto estético e sujeito filmado. Os momentos mais bonitos do filme vêm da proximidade dos personagens que evitam uns aos outros em casas dramaticamente vizinhas. Nessas horas a mão do diretor desaparece, e conseguimos finalmente enxergar o Mississippi e algumas das almas que o habitam – que é justamente a proposta inicial de Hammer. Porém, em sua maior parte, as intenções estéticas do diretor são tão visíveis que o filme parece conscientemente confeccionado para ganhar prêmios nos festivais internacionais.

Ballast se segura numa estética escancaradamente dardenniana, mas sem a precisão e fluidez dos mestres belgas. A câmera na mão (que parece ter se tornado a única opção para um registro naturalista) balança mesmo, e às vezes parece que vai cair da mão do operador. Ballast tem uma beleza suja, mas friamente calculada. Os cortes vêm muitas vezes atrasados para conferir autenticidade, como calça jeans que já se compra rasgada. Os não-atores falam super baixo, ao ponto do não-entendimento, para parecerem naturais. Mas o que mais me incomodou foi a tristeza: ao longo do filme, não há sequer um momento de alegria entre os negros miseráveis do delta. Por mais que Hammer procure se distanciar de um retrao estereotipado de seus personagens, essa tristeza monocromática acaba se tornando um estereótipo. Aqui, é impossível não incluir a figura do diretor branco na discussão; me pergunto se essa tristeza não vem imposta com um certo julgamento por parte do diretor.

Com isso, não quero sugerir que o filme seja desonesto ou que o retrato do Delta não contenha suas verdades. Quero apenas apontar para um sentimento de que os objetivos estéticos do diretor parecem se sobrepor à preocupação com o elemento humano – que parece ser apenas circunstancial.

Se em Ballast os personagens estão a serviço da visão do diretor, em Sugar os diretores estão a serviço da vida interna de seus personagens, mais especificamente de Miguel “Sugar” Santos. Sugar segue a jornada de um jogador de beisebol dominicano que sonha com o American Dream. O garoto é bom e é mandado para uma pequena liga em Iowa. Ele se dá bem por lá, e tudo nos leva a crer que ele será o novo Sammy Sosa. Mas não. Chega um outro dominicano, melhor que ele, e logo logo nosso herói se encontra no banco. A partir desse momento, o beisebol sai de cena e seguimos Sugar em uma nova e imprevisível jornada, onde os valores do protagonista jamais se confundem com o reducionismo de um sonho distante, reservado para uma pequena minoria.

O filme destrói o sonho americano com uma honestidade brutal. Filmado com clareza, num misto sutil entre a câmera na mão e coberturas mais clássicas, a câmera de Andrij Parekh (Half Nelson e Sonhos de Peixe) traduz todo o interesse, respeito e dignidade com que os diretores tratam seus personagens, que vivem na tela sem serem ofuscados pela proposta formal. Ryan Fleck e Anna Bolden encaram frontalmente o que significa ser dominicano na busca pelo sonho americano. Eles entendem que a grande maioria dos jogadores de beisebol dominicanos não consegue atingir o estrelato. E eles incorporam isso na narrativa, ao invés de simplesmente colorir o gênero (filme de esporte) com uma nova etnia.

A ironia é que Fleck e Bolden são as verdadeiras pratas da casa. O casal ganhou o festival com o belíssimo curta Gowanus, Brooklyn, tendo sido convidados para os laboratórios de Sundance para desenvolver o longa Half Nelson, uma estréia bonita e madura que deu a Ryan Gosling uma merecida indicação ao Oscar. Ou seja, esse é um filme de Sundance por excelência, já que seus realizadores foram devidamente cultivados pelo festival. Porém, Sugar está longe de ser esquemático (tanto na forma quanto no conteúdo) e muito menos oportunista. Trata-se de um filme sincero, onde a verdade da minoria étnica retratada fala mais alto que os objetivos estéticos dos diretores, que se recusam a manipular a jornada dos personagens a fim de circunscrever o filme a uma fórmula – seja esta uma fórmula genérica (o filme de esporte) ou a irônica fórmula do cinema independente (irônica pois já se tornou um gênero e, como um gênero, é cada vez menos independente).

***

Sleep Dealer, de Alex Rivera (EUA/México, 2008)

Quando a proteção ao personagem se sobrepõe ao drama

O primeiro longa-metragem de Alex Rivera apresenta, por um lado, uma exceção ao modelo naturalista dos dois filmes acima. Apesar de lidar diretamente com a questão da imigração mexicana nos EUA, um tema carregado de urgência e bastante na moda, Rivera ataca o problema através da ficção científica. Rivera posiciona seu personagem mexicano, Memo Cruz, num futuro não muito distante, onde a mão-de-obra mexicana é realizada virtualmente do México. Com isso, o problema da imigração apresenta-se como resolvido: os EUA recebem toda a mão-de-obra mexicana da qual necessita, porém sem sua presença física em solo americano.

O filme começa quando Memo decide abandonar seu pequeno vilarejo em direção a Tijuana, onde ele vai tentar instalar no seu corpo os nódulos que lhe permitirão trabalhar numa das empresas que oferecem serviços virtuais para os EUA. No caminho, Memo conhece Luz, uma mulher que trabalha coletando histórias do povo mexicano para seu blog. Quando o post sobre Memo desperta interesse no cyberspace, a moça decide procurar por ele e ajudá-lo a instalar os nódulos no mercado negro.

O filme toca levemente no conflito ético da personagem feminina, que acaba se envolvendo emocionalmente com Memo, ao mesmo tempo em que se utiliza de detalhes de sua jornada para alimentar o diário virtual. De uma certa maneira, essa questão ética, reduzida na figura da escritora, funciona como um espelho do cineasta – que se envolve com seu personagem ao mesmo tempo que o explora para construir sua narrativa.

Quando Memo inevitavelmente descobre o que Luz vinha fazendo, eles brigam; mas, após a moça lhe dar uma prova de amor, ele a perdoa. É como se o diretor estivesse afirmando que, apesar de explorá-lo enquanto personagem, ele ama Memo – eximindo-se portanto da culpa na sua caracterização. O problema aqui é que as diversas situações dramáticas são todas resolvidas muito facilmente. O diretor é tão cuidadoso com a exploração do seu sujeito que o filme se torna inapropriadamente leve. Memo quase não sofre, e sua expressão de indiferença torna o filme monótono. É difícil sentir alguma coisa pelo protagonista de Sleep Dealer, pois seus obstáculos são superados com muita facilidade; e isso simplesmente não parece verdadeiro.

Investimento, interesse e cuidado com o sujeito não significa superprotegê-lo. O instinto da proteção é o maior inimigo do drama. Interesse e cuidado com o personagem significa, acima de tudo, honestidade em relação à verdade do mesmo. Se isso inclui muito sofrimento, o que não deveria ser diferente no caso de Memo – emigrante pobre e rural, explorado pelo sistema e por uma escritora – a proteção cria uma imagem falsa para o público, e essa falsidade é tão problemática quanto a exploração para fins sensacionalistas.

***

E nós com isso?

Acredito que essa discussão não aponta apenas para uma tendência no cinema independente americano – ela também providencia um espelho para tendências em outros cinemas nacionais, inclusive o nosso. Apesar das minorias étnicas brasileiras não serem tão facilmente identificáveis – devido muito às implicações da nossa miscigenação no consciente coletivo – nossas minorias (na verdade maiorias) sociais são duramente aparentes. Ao nosso redor e no nosso cinema.

Os motivos dessa predileção pelo retrato do outro, do excluído, são inúmeros tanto quanto são individuais. Mas a responsabilidade do realizador é a mesma – e volto aqui à pergunta: existe um interesse real no problema humano retratado ou esse problema é utilizado somente para atender aos fins formais ou temáticos de uma tendência?

A última opção revela não somente um oportunismo por parte do realizador mas também a exploração da minoria retratada. Tal exploração é muitas vezes inconsciente, já que se tornou perfeitamente internalizada e aceita. O que nós falhamos em perceber é que essa exploração estética é uma extensão direta da exploração brutal da qual as minorias (étnicas ou econômicas) já são vitimas, antes do cinema. Algo que Joaquim Pedro de Andrade conseguiu diagnosticar com precisão no seu monumental curta Brasília, Contradições de uma Cidade Nova, onde os trabalhadores que constroem a nova cidade jamais poderão usufruir de seus prazeres estéticos.

Fevereiro de 2008

editoria@revistacinetica.com.br


« Volta