Sudoeste, de Eduardo Nunes (Brasil, 2011)
por Pedro Henrique Ferreira

Cinema de imaginários

Se há uma linha progressiva discernível no cinema contemporâneo que aposta numa percepção imediata da realidade etérea e sensível (da qual, por exemplo, Abismo Prateado é um exemplar nacional), há também uma outra guinada que ruma em sua contramão. O que esta via contrária trava é justamente uma abstração da realidade imediata: um cinema que se distancia da sensibilidade sensorial do mundo e funciona a partir de um barroquismo de imaginações e imaginários, de uma ambientação extraterrena, processos de alegorização e entropias de sentidos. Esta apontamento que, de algum modo, marca uma ruptura rigorosa com um momento anterior encontra proeminentes figuras em, por exemplo, Apichatpong Weerasethakul ou Kiyoshi Kurosawa, e este Sudoeste, longa-metragem de estréia de Eduardo Nunes, pode ser considerado um bom exemplar nacional.

RaniaO que une com mais afinco esta corrente é que ela encontra no gesto de se “fechar os olhos” sua expressão mais virulenta, sua motivação mais primeva, afinal, fechar os olhos é justamente abstrair o que se vê e arrojar a imaginação naquilo que é a tábula rasa cinematográfica, ou seja, a tela preta (ver o texto de Thiago Brito sobre Mãe e Filha). Neste cinema de imaginários, fechar os olhos e adentrar a tela preta não é tanto o momento de morte da imagem quanto justamente o momento inaugural de criação, a condição sine qua non para se libertar a imaginação.

É o gesto político maior que possibilita a elaboração mesma de Sudoeste: sonhar com a chuva até torná-la realidade; permitir que o mundo mesmo se crie a partir de um conjunto de dados internos, ou, falando mais concretamente, permitir criar a distorção em um mundo onde não há realidade, mas tão somente imaginários. Não é que o tipo de cinema ao qual Sudoeste se filia se auto-valide em uma tese antiquada de art pour l´art, mas que sua única e vital forma de atuação é sobre as evidências de um imaginário coletivo, um coup de grace no realismo que, ao menos desde Bazin, a história do cinema teria perseguido. O papel e função artísticos não teriam mais a ver com apreensão ou fruição do mundo. Ao contrário, têm a ver com composição técnica e o valor que busca é unilateralmente o quão fortemente mágica é a aparição da imagem neste grau zero que é a tela preta. Se existe uma bruxa a ser queimada no vilarejo, é por que ela dá nascimento a esta aparição mágica de Clarice (Simone Spoladore) que vive em absoluto descompasso com aquele universo. Fiel somente à própria imaginação, o artista opera por adição e sinestesia, afinal, a própria imaginação interior agrega uma quantidade infinda de dados contraditórios que se confundem uns com os outros.

A narrativa de Sudoeste encontra justamente um espelho desta situação – uma vida inteira, uma teleologia de nascimento à morte, em descompasso com o cotidiano dos pescadores de Massambaba-RJ, uma historicidade circular. É um gesto semelhante, talvez, ao que determina o cinema de Apichatpong Weerasethakul, ou seja, o estabelecimento de situações opostas para via de comparação. Mas Eduardo Nunes agrega ambos os regimes nas mesmas imagens sem criar um ponto de contato - apenas um descompasso, uma distância que impossibilita toda e qualquer comparação. No fundo, Sudoeste organiza esta evidência de seu próprio distanciamento – reconhe, não sem melancolia, a distância entre sua magia e a realidade que esta magia deveria, de algum modo, afetar.

RaniaSe a relação de descompasso entre a fantasmagoria mágica de Clarice (Simone Spoladore) e as demais vidas do vilarejo é um tanto quanto tétrica, é justamente por que há também melancolia no descompasso entre o autor e o mundo, a arte do imaginário que Sudoeste almeja, e aquilo que ela parece buscar deformar. Reconhecer seus limites problemáticos é o seu maior mérito. O que de fato freia absurdamente a imaginação do diretor, tornando-a um tanto inoperante, é ela funcionar por aquilo que talvez seja justamente o maior entrave e armadilha desta forma cinematográfica, esta palavrinha que hoje em dia se tornou tão comum e que faz (ou deveria fazer) pouco sentido no pensamento e reflexão sobre a arte (sobretudo no Brasil): as referências. Sudoeste é uma soma de sentidos plásticos distantes entre si, de Mario Peixoto a Andrei Tarkovski, utilizando-se um pouco de cada para compor um painel cambiante - que o autor pretende mágico e fabular, mas que, em realidade, se apresenta como um virtuosismo fetichista. O que, se por si só não chega a ser um problema (afinal, alguns dos grandes mestres foram grandes fetichistas), aqui cria poucos pontos de contato entre si - e, sobretudo, poucas pontes e deformações dos imaginários comuns que esta espécie de cinema costuma desvendar. É realmente neste momento que a imaginação se enclausura em si mesma e perde toda e qualquer relação com o outro, fazendo de sua experiência estética um limbo, um arcabouço para uma celebração da própria ciranda cinematográfica, sem que esta atinja (conquiste, contamine, reinvente) o imaginário comum.

É bem possível que a tela preta com a qual Sudoeste também começa tenha se tornado um dos maiores clichês do cinema contemporâneo, um que entende a ausência da imagem como o berço da criação. Mas até este ato se configura das maneiras mais diversas possíveis, apontando caminhos diametralmente opostos como, por exemplo, o freio da imaginação por um realismo incoercível da matéria e da luz no cinema de Bela Tarr (também em P/B) ou Albert Serra. O sentimento é de que deparamo-nos com um outro paradigma, uma espécie de repeteco do debate Carracci-Caravaggio no barroco do século XVI (sobre o papel da arte e da imaginação), pelo qual, lutando para encontrar sua função, uma determinada linha ou um conjunto de linhas cinematográficas começam a passar.

Outubro de 2011

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