nas locadoras
Código das Ruas (Sucker-Free City),
de Spike Lee (EUA, 2004)
por Cléber Eduardo
Televisão vs. Spike Lee+Cesar Charlone
Pergunto a um amigo, admirador de Spike Lee, se
tinha visto Código das Ruas, lançado diretamente em DVD.
Ele reage: “Não vi. Mas esse é o filme dele para TV”. Essa informação,
empregada para justificar seu menor interesse, pré-julga o resultado:
Lee não poderia ser Lee na televisão? Se não pode, o filme vale
menos, porque, em alguma medida, é um filme da Showtime, a produtora
de Código das Ruas, e não de Spike Lee. Ou é apenas um
Spike Lee adaptado a Showtime? Esse é o raciocínio por trás de
tal resposta, bastante comum entre críticos de cinema, sobretudo
os escorados em uma noção de cinema de autor vinculada à independência
criativa durante o processo de realização.
No entanto, essa mesma lógica (televisão = não
autoria) pode ter efeito contrário, ou seja, de aguçamento da
curiosidade. Assim como os Cahiers du Cinema nos anos 50 procuravam
os traços estilísticos de um diretor em seus trabalhos para grandes
estúdios, mesmo estando esses sinais de autoria limitados pelas
condições de produção (por quem paga), não deixa de ser estimulante
verificar qual o procedimento na televisão de um Spike Lee. Não
se está afirmando que, no cinema, esse autor tenha mais liberdade.
Talvez tenha apenas outro tipo de limitação (da ordem estética
e de conteúdo), como aliás tratava disso o texto de Cinética sobre
O Plano Perfeito.
O suposto embate de forças entre indivíduo e empresa
começa com o logo do Showtime. Na seqüência, surge o crédito
de Spike Lee. Os letreiros iniciais se transformam em cartelas
introdutórias para apresentar a contenda entre sistema de produção
e sistema de criação (Showtime vs Lee, Televisão vs autor). De
cara, Lee leva na trave. Letreiros explicativos e um ou outro
diálogo parecem propor uma aproximação pedagógica, e com espírito
de denúncia, em relação aos espaços sociais e geográficos de São
Francisco (o gueto dos negros e Chinatown). Falsa ameaça. A narrativa
dribla essa proposição didática e não ilustra em imagens e cenas
as informações contidas nos tais letreiros explicativos. O que
ameaça ser da ordem da televisão (as explicações, a denúncia),
a seguir é reduzido a um ruído, que, além de não se integrar com
as situações exibidas, não têm continuidade, tornando-se frases
soltas e sem conexão com a ficção ali exposta.
As palavras referem-se, na verdade, ao espaço
real. E essa desintegração da relação direta entre informação
escrita e informação encenada introduz certa anomalia formal à
narrativa. Serve apenas para indicar a relação entre a encenação
dos conflitos daquele espaço (São Francisaco) com os espaços reais
nos quais o filme está ambientado. Se há desejo por uma narrativa
de “ensinamentos”, certamente o diretor escapa dessa tarefa, criando
uma relação moderna em seu embate. A lógica é expositiva: todos
os personagens e todas as ações deles só interessam enquanto dados
de um painel social. Spike está menos interessado nos indivíduos,
com seus problemas específicos, e mais em um recorte de comunidades
(a negra, a chinesa). Valoriza a hierarquia e as regras das relações
do crime. Procura abordar a questão étnica, sim, mas apenas para
relativizá-la. A tensão entre os grupos rivais não é despertada
e mantida pelas diferenças de origem e cor, mas pelo controle
econômico de determinadas atividades circuladoras de dinheiro
(a pirataria de CDs): é a guerra pelo poder no capitalismo clandestino
o interesse de Códigos da Rua.
Talvez por conta da pressão por uma realização
rápida, com menos dinheiro que o disponibilizado no cinema, a
construção visual tem momentos desleixados na resolução de algumas
cenas. Também é notável a falta de jeito do filme em passagens
em que os planos são mais curtos, e as seqüências são constituídas
de muitos cortes. Quase não se percebe nesses momentos a assinatura
de Spike Lee. A formatação prévia, aparentemente, impera sobre
o autor. Mas se há um interesse verdadeiro, ele está nos paradoxos,
nas opções visuais móveis, que se ajustam a cada um dos três eixos
narrativos (protagonizados por um branco, um negro e um chinês).
O trânsito por texturas e tonalidades variadas, trânsito sem transe,
salientam a despersonalização do cineasta (em relação ao que conhecemos
dele). Não se está, aqui, cobrando fidelidade a opções formais
anteriores. O importante é acompanhar essa movimentação de Spike
Lee por outras formas de colocar seu olhar em situações já familiares
em seu cinema. Se, em alguma medida, Código das Ruas é
Faça a Coisa Certa, também é alguma outra coisa, porque
agora há um esforço para se despir da marca já registrada (a marca
de Spike Lee).
O primeiro momento narrativo, protagonizado pelo
núcleo de negros (o maior), parece bastante decalcado de Cidade
de Deus. Se sabemos da assinatura de César Charlone na fotografia,
não parece surpresa esse namoro com o filme brasileiro. Charlone
pluga suas lentes nas imagens de CDD, procurando sintonia
de textura, de enquadramentos instáveis, de travellings
ágeis, evidenciando a estética de realismo estilizado, que opta
pela crueza barroca, com os artifícios da linguagem clamando para
serem notados. Não deixa de ser curioso que a potencialização
dessa marca, presente com outra gradação no cinema de Gonzalo
Iñaritu (Amores Brutos, 21 Gramas), é mais forte
nos EUA que no Brasil (basta lembrar da participação de Charlone
nos últimos dois filmes de Tony Scott). Se Spike Lee imita Meirelles,
por meio do mesmo fotógrafo do diretor brasileiro, Charlone, por
meio de Spike Lee, também se livra de sua própria marca, chegando
a namorar Won Kar Wai na adulteração da velocidade da imagem no
estetizado cenário chinês. Temos, assim, cineasta e fotógrafo
procurando reiventar-se sem perder a postura.
Código das Ruas é, portanto, um filme com
os traços distintivos e facilmente reconhecíveis de Spike Lee
(com um toque de performance-instalação na elaboração de algumas
cenas), mas também é um filme de um outro Spike Lee, aparentemente
mais aberto a outras manifestações cinematográficas. O fato dele
ter depois realizado O Plano Perfeito, “um filme policial
de assalto”, mas também muito mais que um filme policial de assalto,
parece ser um sinal dessa maior abertura. Seria essa possibilidade
de um Lee mais híbrido, que soma seu universo já conhecido a codificações
outras, um novo rumo em sua filmografia? Sua autoralidade estaria
assimilada pela indústria das imagens e, sem romper com ela (pelo
contrário), estaria procurando novas configurações e diálogos?
Se as respostas estarão nos próximos filmes, parte das questões
está em Código das Ruas.
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