in loco - cobertura dos festivais
Joe Strummer: O Futuro Está Para Ser Escrito (Joe
Strummer: The Future Is Unwritten), de Julien Temple (EUA, 2007) por
Fábio Andrade Reescrevendo
o mesmo passado
Sempre que um artista concebe
um projeto a partir da vida ou do trabalho de outro artista, surge um inevitável
dilema: até que ponto a obra resultante precisa dialogar com o espírito que a
inspirara? Embora a questão seja instigante, os filmes não dão respostas absolutas:
para cada Não Estou Lá (filme-pulsão de Todd Haynes inspirado nas muitas
vidas de Bob Dylan) há uma penca de Johnny & June (a problemática cinebiografia
de Johnny Cash realizada por James Mangold). Há também filmes brilhantemente distantes
(para ficarmos em um exemplo dentro do próprio Festival, temos Inútil,
de Jia Zhang-ke) e mimeses de estilo um tanto constrangedoras (lembremos dos planos
à Limite de Onde A Terra Acaba, de Sérgio Machado, por exemplo).
No
caso de Joe Strummer: O Futuro Está Para Ser Escrito, há uma notável intenção
de carregar a imagem com as cargas pulsantes do personagem que dá título ao filme
– Joe Strummer, falecido músico mais conhecido por ter liderado a banda punk inglesa
The Clash. O problema maior é que esse desejo se manifesta apenas na superfície,
e não na realização e organização do material filmado. Em cada montagem de atrações
com cânones da rebeldia (de If... – clássico do free cinema inglês
dirigido por Lindsay Anderson – à adaptação animada de Joy Batchelor e Jon Halas
para a Revolução dos Bichos¸ de George Orwell), há sempre uma previsibilidade
organizadora do material, estabelecendo relações desgastadas, gerando o incômodo
semelhante ao de se ver um adulto vestindo roupas de garoto. A partir do momento
que Julien Temple tenta aproximar seu ritmo às canções do líder do Clash, reina
a impressão de que Joe Strummer é um trabalho de gabinete; um discurso
conservador que se esconde sob uma fina pele de aparente rebeldia. Um agente disfarçado. Se
essa imagem wanna-be gera um desconfortável embaraço, resta, portanto,
ater-se ao discurso. E é exatamente aí que o filme de Julien Temple passa de uma
homenagem, a uma acidental afronta ao líder do Clash. Pois embora o filme traga
um depoimento de Strummer dizendo que sua ruína artística começara quando sua
banda deixara de ser parte de algo maior (a cena punk inglesa, a bem dizer), e
se tornara produto de idolatria desgarrada em um universo do qual eles não faziam
parte, Julien Temple repete esse movimento histórico isolando Strummer de seus
pares. Há,
ao longo de todo o filme, a intenção de celebrar seu passado gênio individual,
seja nos depoimentos de seus ex-companheiros de banda, nas falas de fãs ilustres
(Bono, Red Hot Chili Peppers, Johnny Depp, John Cusack) ou na constrangedora rodinha
de violão à beira da fogueira, onde amigos e ex-parceiros musicais tocam canções
famosas do Clash (mesmo que não sejam de autoria de Strummer – como é o caso de
“I Fought The Law”, cover de Sonny Curtis & The Crickets) em festivo funeral.
Não ouvimos sequer uma canção inteira, pois há, no filme de Temple, não o fascínio
pelo magnetismo de um artista, mas sim o desejo discursivo de construir um intransponível
abismo: o ídolo e seus seguidores. Exatamente por isso, a
única parte do filme que ganha algum interesse é a que se concentra na vida de
Joe Strummer pós-Clash. Talvez porque, seja em seus trabalhos solo ou nos últimos
discos com os Mescaleros, a trajetória de Strummer tomou rumos de tão pouca visibilidade,
que o filme tenha dificuldade de celebrá-la como estado de exceção. Ao passar
por um momento de tranqüilo sumiço das páginas dos jornais, o filme de Temple
precisa se concentrar no “pouco” que restou: as canções, as pulsões realizadoras
de Strummer ao lado de novos e velhos parceiros, a interação com uma geração que
mal sabia de seu passado. Nesse momento, o filme ganha um derradeiro sopro de
força, que se esvai com a precoce morte do músico. Pouco demais, tarde demais. Outubro
de 2008 editoria@revistacinetica.com.br
|