Em
Busca da Vida (Sanxia Haoren), de Jia Zhang-ke (China/Hong Kong, 2006)
por Paulo Santos Lima Entre
a vida e a morte, a imagem Usemos, de saída,
Still Life, título internacional deste Em Busca da Vida.
É, afinal, o mais adequado para um filme de Jia Zhang-ke, em que a contemplação
(a nossa, diante dos planos, e também a dos personagens, dentro da diegese) é
o que sempre está em jogo. Assistir é o que fazem os jovens de Plataforma
e Prazeres Desconhecidos a respeito da política da República Popular da
China, mas é neste Still Life (e no anterior O Mundo, de 2004) que
a vista torna-se uma questão na tela, um dado presente nesta. A tradução mais
direta do termo, “natureza-morta”, diz respeito à pintura, ou seja, à imagem,
a algo a ser visto. Isso também coincide com o que está no enquadramento, um embaçamento
na profundidade de campo gêmeo dos quadros pincelados à tinta, sobretudo as naturezas-mortas
chinesas. No filme de 2004, havia um parque temático que
reproduzia as grandes cidades do planeta através de miniaturas de seus monumentos
e pontos turísticos. Em princípio, então, bastaria contemplar esses totens para
se estar nos lugares, mas o longa também mostra e dá especial atenção aos personagens,
que vivem seus dramas, solidões, amores e ciúmes em tamanho real. Um pendular
entre a narcolepsia boçal provocada pelo artifício das reproduções e a vida pulsante
e valiosa dos funcionários desse parque.
Não
é diferente em Still Life, onde moradores e visitantes da cidade de Fengjie
assistem meio “catatônicos” à morte daquele milenar e valioso sítio chinês, cujas
grande e micro história são perdidas com o avanço das águas inundantes da futura
usina hidrelétrica de Três Gargantas (esta, de fato e na realidade, subindo as
águas do rio Yangtsé para mergulhar tudo em nome de um progresso tecnológico na
nova China). A situação, no filme, é a de todo um repertório de memórias (existências)
sendo afogado e, em meio a esse assassínio irrefreado, as pessoas prosseguem,
impotentes, tecendo sua existência em tempo real e in loco. Estamos,
aqui, diante de uma situação de morte, falecimento de todo um estilo de vida,
grupos humanos deslocados e empurrados a outros cantos errantes. Tal incerteza,
presente desde Plataforma (que apresentava um grupo de músicos atravessando
o oceano incerto do mutante processo político chinês ao longo dos anos), ganha
aqui proporções colossais, como o é a política do governo, sepultando estilos
de vida sob o estandarte do desenvolvimento econômico. Daí, nesse panorama, é
que a tal busca da vida (o que se mantém brega, mas não tão equivocado o título
brasileiro para o original em chinês Sanxia Haoren) torna-se potente. Não
politizada, que fique claro, uma vez que há uma harmonização ao novo modo de vida
“desidentitário”, com vários tentando reeencaixes, aceitando a lógica do dinheiro
e do espetáculo (a ponte é um delírio visual contemplado por todos, com o mesmo
arregalo com o qual olham tristes a ruína do esqueleto urbano de Fengjie, por
exemplo). Melhor dizendo, o viver mostra-se inerente na sucessão de acontecimentos,
do mais prosaico gesto à dramática busca, tudo isso tratado com certa naturalidade
(ou naturalismo). Os personagens, neste e nos outros longas do cineasta, são diretamente
afetados pelo contexto, mas não dialogam diretamente com ele, apenas seguem em
frente, o que, na prática, é uma grandissíssima força de resistência contra a
fluidez líquida das coisas orquestradas por um governo que é menos citado do que
presente por sua monumentária. Jia Zhang-ke, em seus filmes,
não distingue o que seria certo e errado. As coisas simplesmente estão na tela,
no mesmo plano – claro que não necessariamente conjugadas, porque a natureza,
aqui, mostra-se domada para outros fins: as águas destinadas à destruição não
só de uma arquitetura como de uma geografia que se antecedia à própria instalação
do homem na que viria a ser a cidade de Fengjie. Ou os alimentos embalados ou
cozidos da forma mais humana possível, e até cigarros e celulares somando-se à
presença do astro chinês Chow Yun-Fat, cujos filmes inspiram o mototaxista deste
Still Life. O filme, portanto, não combate o processo, mas deixa aos nossos
olhos os seus vômitos ácidos. Resta,
no fim das contas, a vida no sentido existencial, até biológico (as refeições
e entretenimentos contribuem para isso). Seja no meio, com o colega de profissão
do marido auxiliando Shen entre ruína e outra de prédio, seja o final, com o carvoeiro
Han completamente enturmado com os locais, brindando sua partida com umas biritas,
o que fica na tela é o viver humano. Um existir que se faz sólido, concreto na
tela, contraposição à mutação líquida das coisas (no sentido dissertado por Bauman
em seus manifestos sobre a modernidade). Uma volatilidade, aliás, que agrega na
mesma tomada identificável e reconhecido corpo humano com elementos “estranhos”,
de esqueletos de prédio parecendo estações orbitais, de surreais equilibristas
e discos voadores a shows notadamente freaks. E é
o tempo de cena, os travellings laterais e a constante profundidade de
campo quem traduzem esse repertório em cinema. É a imagem que responde a tudo,
nesta obra-prima. Assim, ao dar foco a tudo que está no campo (há, no máximo,
em algumas cenas, um enevoado, mas jamais um desfoco), o filme compreende o processo
histórico que ali se faz na diegese, e que, claro, responde, em off, à
República Popular da China — e ao mundo, porque a ênfase está no esforço humano,
em seus amores e desencontros. Ao tempo da montagem, aos planos mais longos que
retêm o tempo final daquele lugar, mas também repete a experiência neo-realista,
captando as pequenas ações. E, talvez menos presente, porém mais agudo, são os
movimentos de câmera, sobretudo o pronunciado travelling lateral: com ele,
abre-se o arco do olhar, quase documentalmente (Zhang-ke filmou numa cidade que,
de fato, será tomada pelo represamento de Três Gargantas), e tanto para a contemplação
da natureza resistente quanto para ao colosso espetacular das obras megalômanas
do homem, da TV que mostra um action movie de John Woo aos garfos, pratos,
roupas, portas carcomidas de uma cultura em acelerado processo de mudança. Todo
esse drama retratado sem dramatizações, mas sim com uma câmera que passeia pela
cena, atenta e fiel a tudo que podemos chamar de índice, dado de imagem — e respeitando
essa natureza da imagem contemplando a tudo que enquadra. Ser fiel a isso e ainda
fazer um discurso essencialmente visual sobre um drama do tamanho da China não
parece uma missão nada possível. Jia Zhang-ke, contudo, fez o impossível, e assina
um dos melhores filmes dos últimos anos. editoria@revistacinetica.com.br
|