in loco - cobertura dos festivais

Steak (idem), de Quentin Dupieux (França, 2007)
por Eduardo Valente

Da comédia como agressão

Steak já passeia na tela como objeto suficientemente estranho por si mesmo, como foi provado pela recepção absolutamente estupefata de boa parte da crítica e público na França – o que dirá sem qualquer tipo de contextualização, como ele acaba sendo forçosamente visto por aqui. Talvez por isso mesmo valha a pena começar com o mínimo: um currículo dos principais envolvidos. “Éric et Ramzy”, a dupla de atores protagonistas que assina assim mesmo em conjunto, são dois comediantes vindos do rádio e da TV, que assinaram alguns grandes sucessos do cinema francês recente. A melhor forma de pensar sobre eles em termos nacionais seria como um ponto de encontro (improvável que seja) entre Os Trapalhões e o Casseta e Planeta. Já Quentin Dupieux começou a trabalhar com Michel Gondry e circula tanto pela música eletrônica (seu alter-ego Mr. Oizo assina parte da trilha do filme e já encontrou considerável sucesso na França e Inglaterra) quanto pela criação de videoclipes, publicidade e afins.

Esclarecido um mínimo sobre quem os principais (ir)responsáveis por Steak, o leitor-espectador provavelmente continuará com uma mesma estupefação frente ao que se vê na tela, porque se parte do DNA do filme pode ser retraçado a algumas das origens acima (comédia popular, Gondry, humor de palavras do rádio), nada ali prepara para a forma como estes elementos vão se sobrepondo no filme em si. Talvez realmente seja caso de pegar um dos motes absurdos recorrentes no filme (o de que existiria um “novo humor” que pede toda uma outra educação por parte do receptor para compreender), e aplicá-lo completamente ao ato de assistir a Steak. Sentimos isso talvez principalmente pelo fato de que não só o humor que domina o filme soa tão agressivo e desconhecido, mas também pelo fato de que boa parte de sua novidade vem da aparente opção que ele faz por não fazer apenas uma opção por maneira de trabalhar o humor.

De fato, se Steak tem uma forma narrativa que nos assombra por funcionar tão dentro de uma lógica que combine a autonomia completa das cenas e uma perfeita (ainda que propositalmente inconclusa) articulação das ações, o seu humor também parece combinar opostos complementares constantemente. É por isso que vemos tanto a paródia mais assumida (principalmente com a idéia de um cinema de high school) quanto a construção de um universo próprio cheio de regras e rituais absolutamente únicos; ou que temos o humor físico mais direto (a cena da bicicleta na ponte ou do tiro no final) e o humor de construção absurdamente complexa no uso da palavra (a fantástica cena no carro na volta da prisão); que temos o humor do absurdo (na resolução do sequestro) com o mais cotidiano.

Tudo isso faz de Steak uma montanha-russa de expectativas que claramente não se dispõe nunca a facilitar a vida do espectador, no que talvez seja sua característica mais admirável (e que tanto explica o imenso fracasso que foi nas bilheterias francesas), principalmente se pensado como produto de uma das duplas mais rentáveis e queridas do público. Porque, no fundo, se pensamos bem, no fundo é isso que Steak é: uma agressão constante. A quem espera humor “inteligente”, mergulha sem medo em momentos da mais assumida estupidez; a quem espera humor simples, soa como música atonal; a quem espera humor como relaxamento, propõe incômodos constantes (visuais ou de observação não só de um estado de mundo, mas até mesmo da forma de fazer a crítica deste pela via do cinema paródico). Em suma, Steak, como já dizia Chacrinha, veio para confundir – e por isso é muito bem-vindo.

Outubro de 2008

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