in loco - cobertura dos festivais
Starlet, de Sean Baker (EUA, 2012)
por Filipe Furtado

Questão de percepção

Não há tarefa mais inglória do que realizar um filme contra a própria premissa. Quando se é bem sucedido, termina-se com um filme que invariavelmente vai agradar majoritariamente cinéfilos que provavelmente irão evitá-lo com base numa descrição rápida do seu conteúdo. Pois bem, Starlet é um caso exemplar de filme construído contra sua premissa. Diante do filme, fica claro que o diretor Sean Baker seguia se propondo problemas que seu filme passa todo o tempo buscando desarmar. Sua trama não poderia ser mais banal (a amizade entre uma garota de 21 anos e uma viúva de 85, ambas solitárias em Los Angeles), seus personagens intencionalmente apresentados como tipos, e há uma informação nova a respeito da personagem central com cerca de um terço de filme que poderia facilmente engolir toda a sua ação, dadas as associações que o espectador traz consigo. Que Starlet obtenha sucesso em praticamente tudo que tenta é tanto o que lhe torna um belo filme e o que lhe garante, dentro da lógica cruel dos festivais de cinema, uma inevitável invisibilidade.

O ponto de partida é uma discussão sobre uma garrafa térmica que Sadie, a viúva, vende para Jane, a jovem, como garrafa térmica, mas que a segunda deseja transformar num vaso. É uma forma simples de estabelecer o conflito no centro de Starlet – um conflito de percepções, menos as percepções das próprias Jane e Sadie do que as do espectador e suas expectativas. Na lógica do filme de Sean Baker, uma garrafa térmica pode mesmo se tornar um objeto de decoração, assim como seus personagens se revelam bem mais do que aparentam, não através de grandes revelações, mas por conta de uma observação cuidadosa e precisa. É por isso que o filme busca deliberadamente dois tipos muito explorados (a idosa fechada sempre na defensiva e a jovem atriz californiana em começo de carreira) para desmontá-los. É, antes de tudo, um trabalho de colaboração muito inspirado de Baker e suas atrizes centrais (ambas estreantes), Dree Hemingway e Besedka Johnson, que, pela simples linguagem corporal, sugerem muito sobre suas personagens.

Starlet gasta bons quarenta minutos até introduzir a principal peça no seu jogo de percepções – leitores que gostam de ver filmes com o mínimo de informações provavelmente deveriam evitar o resto deste texto e, no caso de Starlet, ver o filme sem muitas informações faz mesmo sentido –que é revelar que Jane trabalha como atriz pornográfica. É tanto o dado mais e menos relevante do filme, já que está no centro da proposta de Baker, mas ao mesmo tempo é tratado como um dado qualquer dentro do filme (o máximo que se pode dizer é que, ao contrario de 90% das ficções americanas, compreendemos bem o porquê de a personagem central estar livre o tempo quase todo). É um meio que inevitavelmente traz com ele muitas associações, quase todas negativas, e Starlet o filma sem jamais lançar mão de nenhuma delas. Não que Baker trapaceie e procure localizar ali alguma fofura caricatural como tantos filmes independentes americanos; no único momento em que vemos Jane num set de filmagens, não há nenhuma tentativa do filme em aliviar a cena para o espectador. Mas o que importa não é o que Jane faz em frente da câmera, mas toda a banalidade do seu entorno: do dirigir até o trabalho até as piadas pós-filmagens entre a equipe. Starlet acredita plenamente que Jane é definida pela série de atitudes que toma a respeito das pessoas à sua volta e não por seu trabalho.

Generosidade é um adjetivo complicado de se usar para um filme, porque sugere que falta dela seria uma qualidade negativa em si (o que nem de longe é verdade). Mas essa é a primeira palavra que vem à mente diante de Starlet. Muitos filmes ruins ditos generosos acreditam que simplesmente exibir um carinho excessivo por seus personagens os aproximará de Cassavetes ou Renoir, mas Starlet compreende que a questão jamais é de afeto, e sim de entender pessoas e ações, o que é muito mais difícil. Mesmo aquele que deveria ser a figura a principio mais antipática do filme, o namorado da amiga de Jane com quem ela divide apartamento, funciona perfeitamente – não porque Baker se dispõe a perdoá-lo, mas porque o ator James Ransone o interpreta com tamanho entusiasmo que temos certeza que, para além de qualquer superfície, está ali um sujeito simplesmente excitado por estar envolvido com uma atriz pornográfica. Mais do que generoso, Starlet é um filme justo.

Outubro de 2012

editoria@revistacinetica.com.br


« Volta