Speed
Racer (idem), de Andy e Larry Wochawski (EUA, 2008) por
Fábio Andrade Mundo-pixel
Na
faixa comentada do dvd de Os Incríveis, o diretor Brad Bird diz que uma
de suas maiores ambições com seu filme era trabalhar elementos do cinema normalmente
não buscados pelas produções em animação. Em vez de fazer uso do foco infinito
e da elasticidade praticamente ilimitada do desenho, Bird construiu seu filme
em cima de passagens de foco, compressões de eixo, limitações sensitométricas,
e outros recursos que a ausência da câmera eliminava dos filmes em computação
gráfica. Em Os Incríveis, as “limitações” de um suporte mais rígido eram
absorvidas por uma criação em material não determinado por elas, reconhecendo
que tais manobras de produção geram efeitos estéticos particulares hoje já carregados
de sentido, e que emular esses efeitos seria uma maneira de, transversalmente,
buscar esse mesmo resultado. De certa maneira, os irmãos Wachowski fazem, em Speed
Racer, o caminho absolutamente inverso. Se os filmes anteriores da dupla ainda
patinavam em um uso de computação gráfica bastante tradicional (embora, independente
de críticas, seja impossível ignorar a monstruosa sombra que Matrix deixa
sobre grande parte do cinema de gênero produzido desde seu lançamento), em Speed
Racer, o mergulho nas possibilidades gráficas do CGI tem inegável clareza
em sua intenção: realizar um filme de animação live action.
Se
essa intenção não é, em si, nada nova – comum a filmes tão distintos quanto Uma
Cilada Para Roger Rabbit e Sin City – ela dificilmente alcançou resultados
tão expressivos. Essa força vem da não insistência em promover interação entre
os dois registros, pensando a sobreposição dessas camadas como uma espécie de
colagem visual. Embora as limitações da câmera de vídeo sejam ainda mais críticas
do que as da película, Speed Racer as anula com um trabalho de sobreposição
de planos. O resultado é um filme absolutamente chapado, sem profundidade de campo
ou perspectiva, como se os planos fossem, de fato, recortes sobrepostos em uma
folha de papel. Se essa busca pela extrema opacidade parecia, até hoje, exclusiva
ao que costuma se chamar de cinema experimental (os filmes de Man Ray vêm à cabeça
diversas vezes durante a projeção), os Wachowski parecem buscar, em Speed Racer,
a equivalência entre o signo estritamente visual e a construção narrativa.
Temos
um vapor de trama que é apenas o suficiente para ser identificável ao espectador,
mas que funciona como pretexto para uma discussão sobre o estatuto da imagem no
mundo contemporâneo de surpreendente complexidade. Saímos da busca por uma suposta
fidelidade narrativa à fonte original (desejo que sentimos em Batman Begins,
Sin City ou mesmo em Homem de Ferro), para o interesse pelas encruzilhadas
estéticas entre os diferentes suportes – fazendo, com o anime, cruzamento
parecido com o que Ang Lee faz com os quadrinhos em Hulk. Esse parentesco
voluntário com o anime acaba traçando, para Speed Racer, uma meta
ainda mais ambiciosa: trata-se de um filme disposto a transitar por um volume
considerável do imaginário audiovisual japonês pop contemporâneo. Em seus 135
minutos, Speed Racer vai do anime ao pinku (gênero marcado
na erotização “rosa” da personagem de Christina Ricci), passando pelo cinema de
artes marciais, o manga, e um ou outro flerte com o universo yakuza.
Essa
esquizofrenia visual é cuidadosamente sustentada por uma intenção um pouco mais
profunda: se Brad Bird encontrava na finitude do suporte cinematográfico a maior
expressividade de seu filme, os Wachowski trazem para o cinema o fluxo constante
possibilitado pela animação. Com as transições em cortinas humanas que cruzam
a tela, substituindo um plano pelo seguinte, os Wachowski parecem encantados com
a possibilidade oferecida pela computação gráfica de se produzir um cinema “sem
cortes”. Ao empilhar planos que, destituídos de qualquer profundidade visual,
criam uma só massa colorida que toma toda a tela do cinema, a montagem que desliza,
horizontalmente, gera um fluxo constante de imagens, tentando dar conta de um
mundo em que as relações entre as diversas dimensões de tempo-espaço (concreto
ou virtual) já estão plenamente assimiladas.
Nesse sentido,
é muito expressiva uma imagem que acaba por aproximar, mesmo que por vias inesperadas,
o filme dos Wachowski do cinema de Brian De Palma. Após a corrida final, a cena
do pódio é entrecortada por máquinas fotográficas que se empilham, mediando em
diversas camadas o olhar do espectador para um mesmo e único plano. Se em filmes
como Dublê de Corpo, Missão Impossível, ou, sobretudo, Olhos
de Serpente, essa multiplicação dos registros vinha sempre ressaltar a insuficiência
do quadro cinematográfico (afinal, De Palma é um apaixonado pelas possibilidades
do extra-campo), na construção dos Wachowski eles vêm sempre encerrar um mesmo
mundo que está todo na tela. Assim como a aparência do plano-sequência (mesmo,
e especialmente, quando falso) em Olhos de Serpente deixa os fatos escorrerem
pelas bordas, aqui a sobreposição dos registros (muito claramente expressos na
seqüência das câmeras, mas que na verdade determinada toda a construção visual
do filme) e a passagem “invisível” de um plano para outro constroem um mundo onde
o fora de quadro simplesmente não existe. Mesmo quando é uma só, a câmera, em
Speed Racer, é como uma entidade sem corpo físico, capaz de escorrer pelas
seqüências por todos os ângulos possíveis, dando conta de um mundo em tamanha
suficiência que só é possível por ele ser inventado. Essa
vontade de criar um mundo plano gera, em sua distorção, um dos mais belos momentos
do filme. Em um diálogo qualquer, uma leve compressão de eixo desfoca a cidade
que brilha atrás de um personagem. Saímos do cinema sem traço de lembrança da
conversa, ou de quem conversava. Mas ficamos marcados pelas luzes da cidade que,
com aquele leve desfoque tão impróprio à opacidade daquele mundo, se transforma
em um mar de pixels cintilantes. Fora do registro de visibilidade absoluta construído
pelo próprio filme, aquele mundo nos é exposto em sua evidente artificialidade
de criação. E a imagem que vemos, no fundo do quadro – desnudada de representação
outra que não a exposição de sua própria composição – é incrivelmente bela.
Maio
de 2008 editoria@revistacinetica.com.br
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