in loco - cobertura dos festivais
Spalding Gray - E Tudo Vai Bem
(And Everything is Going Fine),
de Steven Soderbergh (EUA, 2010)
por Fábio Andrade
Montagem
e ressurreição
Em dado momento
de Spalding Gray – Tudo Vai Bem, o próprio
Spalding Gray – ator falecido em 2004 – define dois
grupos de atores. O primeiro é o que atua como atividade,
aquele capaz de virar uma chave mental que o coloca no estado
de atuação logo antes de entrar em cena. O segundo,
do qual Gray diz fazer parte, é o que ele chama de “ator
ontológico”. São pessoas que já nasceram
atuando e não sabem viver no mundo de outra maneira que
não atuando, atuando, atuando. Logo fica claro o desafio
de Steven Soderbergh: como fazer um documentário biográfico
sobre esse segundo tipo de ator, aquele que tem distância
e consciência cênicas suficientes para se definirem
como atores ontológicos?
Todd Haynes talvez já tenha indicado alguns caminhos possíveis
em I’m Not There, mas no caso de um documentário
estrito – mais ainda se tratando de um filme composto somente
de material de arquivo, como é o caso – as soluções
lidam com entraves mais claros. Não é possível,
naturalmente, espatifar tudo em uma – ou várias –
grande ficção, pois o desejo de biografia aqui é
também o de lidar com uma possibilidade de síntese,
de retomar o método e pensamento de Spalding Gray pelos
materiais que lhe sobreviveram. Mas como separar o joio do trigo,
o que é vida e o que é fábula, o que é
encenação e o que é... encenação?
Estamos, naturalmente, muito próximo de um terreno profícuo
de discussão do documentário e da ficção
nos últimos anos, especialmente importante para a produção
brasileira. Steven Soderbergh chegará ao cerne dessa discussão
trabalhando apenas com material já
existente, sem qualquer intervenção além
da montagem que não se coloque às margens da diegese
– o título e os créditos finais. O material,
no caso, é de um escopo bem específico: entrevistas,
alguns vídeos familiares e diversos registros dos monólogos
de Spalding Gray. Mas esses monólogos foram experiências
radicais de criação dramatúrgica, desenvolvidos
pelo ator a partir de suas memórias de vida, em um gênero
que ele batizou “jornalismo poético”. Para
isso, Gray usava uma série de dispositivos – temas,
títulos, palavras-chave, uma caixa cheia de lembranças,
a possibilidade de chamar alguém da platéia ao palco
e entrevistá-la – que disparavam os eventos em sua
lembrança e ele, com brilhante automatismo, transformava
em texto, palavras que compunham frases nunca escritas.
A escolha de ouro de Soderbergh é justamente não
diferenciar em absoluto os materiais. Começamos o filme
acompanhando um de seus monólogos, que será interrompido
por trechos de entrevista, depoimentos de seu pai, para depois
retornar, ressignificado. “Às vezes não sei
se estou ficcionalizando”, deixa escapar o ator, em uma
de suas entrevistas. Por que diferenciar entrevista de performance
se o entrevistado em questão assume estar atuando ontologicamente,
mesmo e inclusive quando coloca sua verdade em crise? Tudo se
embaralha, norteado apenas por um desejo de estrutura. “Quando
não se tem Deus, usa-se a estrutura como forma de dar ordem
ao caos”, diz Gray sobre seus monólogos.
Spalding
Gray cai, portanto, no terreno da farsa – justamente
aquele em que Steven Soderbergh sempre esteve mais à vontade
e pode criar seus melhores filmes. A montagem, embora aparentemente
discreta na organização dos materiais, se apropria
do processo de criação do próprio biografado,
tomando nacos de vida e ficção, e combinando-os,
devolvendo unidade ao que não devia ser separado. Se Spalding
Gray criou uma modalidade tão particular de dramaturgia
e representação justamente ao misturar autobiografia
com invenção, ao filme resta somente recompor esse
pensamento, embaralhando tudo que já é embaralhado,
e devolvendo-o inteiro ao espectador. Pela montagem de Soderbergh,
o pensamento de Spalding Gray volta à vida.
Outubro de 2012
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