Sonhos e Desejos, de Marcelo Santiago
(Brasil, 2006)
por Francis Vogner dos Reis
O passado como fetiche
Sonhos e Desejos é mais um filme (dentre
tantos) que pretendem olhar para os vácuos deixados pela repressão
militar. Conta a história de três integrantes de uma organização
guerrilheira – dois homens e uma mulher que, clandestinos e confinados
em um apartamento em Belo Horizonte, formam um triângulo amoroso.
Cristina (Mel Lisboa) é garota de Saulo (Felipe Camargo), e ambos
escondem em seu apartamento um dos líderes da organização que
está ferido, encapuzado todo o tempo, sem poder ser
chamado por nenhum nome.
O cinema tem o costume de refletir tardiamente
sobre eventos históricos traumáticos. Assim foi sua relação,
por exemplo, com a Segunda Guerra e com o Holocausto, temas que
agitam discussões até hoje. Muitos dos cineastas que olham para
História como matéria-prima de seus filmes buscam traduzir
um sentimento de mundo do presente – seja Rosselini, Fassbinder
ou Scorsese. Algo diferente acontece em casos recentes do cinema
brasileiro, como Zuzu Angel, de Sergio Rezende, ou
Araguaya, Conspiração do Silêncio, de Ronaldo Duque,
ambos servindo como sintomas de uma certa tendência que ambiciona
reconstituir eventos, com assepsia e imediaticidade. Anos depois,
é interessante notar que o melhor filme que olha para os tempos
de regime militar é o avesso de filmes como Zuzu Angel ou
Sonhos e Desejos: trata-se de Alma Corsária, de
Carlos Reichenbach. Precário, com elementos visuais inverossímeis
(carros da década de 90 na rua, figurinos neutros, músicas que
se afastam de uma contextualização histórica concreta), mas assumindo
o caráter de inventário da memória do diretor – além de ter como
objetivo pensar o presente momento (a Era Collor) por meio de
uma perspectiva pessoal.
Como Alma Corsária, todo filme parte de
um grau zero, uma preocupação estética, histórica ou dramática.
E é nesse sentido que Sonhos e Desejos não transparece
em momento algum seus objetivos. Em Sonhos e Desejos encenar
uma história parece uma tentativa, em primeira instância, de localizar
o espectador na década de 70: com músicas do Milton Nascimento
(que também querem trazer identidade à história, que se passa
em Minas), figurinos e direção de arte. Até mesmo o tema parece
ser um acessório. Nada está a serviço de um projeto estético,
mas sim de uma verossimilhança que não obedece a qualquer conceito
mais elaborado. O filme não tem uma verdade (a dele), mas ambiciona,
em termos gerais, a obedecer a uma verdade genérica, e por isso
se prende a questões formais muito óbvias.
A
fotografia que diferencia o mundo externo da intimidade do apartamento,
a abertura com fotos de protesto nas ruas nos anos 70, os flashbacks
em preto e branco pastoso, as tentativas de contextualização de
modo geral não partilham de um conceito, são puro fetiche. Quando
se compara esses trabalhos a produtos de televisão é compreensível,
porque, se eles se aproximam dela em algum momento, é no que esses
filmes apelam para "imagens-síntese", que são de natureza
da TV. Um exemplo: se o filme faz questão de se passar em Belo
Horizonte, ele ao mesmo tempo dá a entender que a cidade não tem
lá muita importância, já que o cineasta não a valoriza em momento
algum de seu filme. Temos informações (inclusive visuais), não
imagens.
Até mesmo a questão de maior parte da ação ser
centrada no apartamento em que os personagens se escondem não
possui muita importância em questão de encenação. É um "lugar"
(um ponto de vista muito relativo), não um "espaço",
uma vez que um espaço cinematográfico consiste na exploração de
suas capacidades cênicas, e fica claro que isso não é objetivo
do diretor. Poderíamos tratar de alguns pontos de partida dramáticos
como a personagem Cristina escrevendo cartas para Clara (ela mesma),
a ligação do guerrilheiro mascarado com o balé, a disfunção entre
destino histórico e vida pessoal, etc, mas tratar dessas coisas,
e da deficiência delas, parece assunto segundo, já que o descompasso
entre as partes do projeto impede que o filme tenha algum achado
dramático mais consistente, ou ao menos, que tenha um desenvolvimento
– no conjunto estético-dramático – razoável.
O que então justifica as escolhas de Sonhos
e Desejos? Um interesse estético? A reconstituição de um fato?
A exploração da psicologia dos personagens? Tudo leva a crer que
não. O grotesco do filme de Marcelo Santiago está em ser Histórico
em um contexto íntimo sem ter objetivo histórico-íntimo algum,
já que sequer a subjetividade da personagem de Mel Lisboa (que
é o foco da abordagem) o diretor assume a contento como princípio
narrativo. O filme de Marcelo Santiago, como outros citados, está
tentando contar essa História (a ditadura, a clandestinidade)
e isso, apesar de não parecer, é mais sério do que o filme faz
crer. Sonhos e Desejos tenta narrar esses fatos, só que
não faz qualquer esforço estético para compreender (e fazer compreender)
aquilo que trata.
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