in loco - cobertura dos festivais

Sonhos de Peixe, de Kyrill Mikhanovski
(Brasil/EUA/Rússia, 2006)
por Leonardo Mecchi

A brasilidade de um olhar estrangeiro

Desde a primeira cena, já ficam claras os interesses que balizam o olhar de Sonhos de Peixe: o foco em uma comunidade pesqueira do litoral nordestino (que remete às investigações de Glauber Rocha em Barravento) e a atenção para os corpos e vozes dos pescadores (herdada diretamente do cinema russo e seu retrato heróico do povo) definem de forma instantânea o modo de apropriação daquele espaço orquestrada pelo diretor Kirill Mikhanovsky. As filmagens em locações e o (ótimo) trabalho com não-atores contribuem para trazer ao filme o realismo almejado pelo diretor, e a atenção à luz daquela região e à dicotomia do universo daqueles pescadores (contrapondo o silêncio quase onírico dos mergulhos no mar ao constante alvoroço em terra) completam esse retrato preciso de um ambiente do nordeste brasileiro.

Passando ao largo do alegórico, o filme se instaura aos poucos naquela comunidade, observando com delicada atenção seus habitantes e suas relações (entre si e com aquele espaço). Essa aproximação quase documental se dá de forma a instaurar no espectador uma empatia e familiaridade tal, que mesmo a trama mínima que move o filme torna-se suficiente para reter sua atenção ao longo de toda a projeção.

É evidente também o fascínio do diretor russo pelo poder da TV no imaginário brasileiro, capaz de mobilizar diariamente toda uma cidade para acompanhar o desenrolar de uma realidade que lhe é totalmente estranha (aspecto reforçado pela já clássica “dublagem de novela mexicana”). A reunião da família e vizinhos em torno de um velho televisor, a interação desses com os personagens da novela (responsável por alguns dos melhores momentos cômicos do filme), a onipresença da novela não apenas na TV, mas também em cartazes e outdoors, tudo isso faz parte ainda do olhar aguçado de Mikhanovsky sobre aquele espaço e suas relações.

A iniciativa do protagonista em adquirir uma enorme TV para a garota que gostaria de sair daquele vilarejo e ganhar o mundo (tema que remete ao recente A Máquina) rende alguns bons momentos – como o trabalho dos homens para carregar a TV, que ecoa o trabalho de levar os barcos ao mar – além da belíssima cena final, que deixa o futuro daqueles personagens em aberto. Apesar disso, essa subtrama aparece como o único elemento estranho àquele ambiente. Se é no olhar documental e atento aos gestos e vozes daqueles pescadores que reside o grande diferencial deste belo filme de estréia, é justamente ao optar por uma clara imposição externa a um retrato até então fiel daquele universo que o filme perde um pouco sua força.

Tal deslize, porém, está longe de diminuir o fascínio provocado por este estranho e belo objeto que é Sonhos de Peixe. Mikhanovsky consegue a proeza de retratar o brasileiro – seus hábitos, costumes e idiossincrasias – com uma naturalidade e precisão da qual poucos diretores brasileiros podem se orgulhar. Um retrato que possui simultaneamente a percepção aguda de um olhar estrangeiro e a aproximação carinhosa de alguém intimamente ligado àquele ambiente, e que coloca o diretor russo ao lado de nomes como Marcelo Gomes e Karim Aïnouz (cujo novo filme – O Céu de Suely – possui semelhanças com Sonhos de Peixe que vão muito além da canção de forró presente em ambos). No atual cenário do cinema brasileiro, não poderia haver maior elogio.


editoria@revistacinetica.com.br


« Volta