in loco - cobertura dos festivais

Sonhando Acordado (La science des rêves),
de Michel Gondry
(França/Itália, 2006)
por Paulo Santos Lima

A ciência da certeza

Desde os surrealistas (ou até antes, quando Freud elegeu-o como objeto de análise), o sonho ganhou tessitura de “real”, dado a ser levado em questão no cotidiano, experiência abarcada à lógica racional da consciência. O cinema, desde Méliès, levou a sério os fluxos oníricos (como presença na tela, imagem), e alguns cineastas, menos ou mais, fundiram o que tradicionalmente chamaríamos de “real” e “virtual”. David Lynch é o melhor hoje, com suas argamassas de mundo dos sonhos e pesadelo do real espirradas no paredão da trama, mas é o francês Michel Gondry quem vem construindo um selo como artista que escafandra pelo oceano onírico, um cientista dos fluxos do inconsciente.

A partir disso, é espantoso como Sonhando Acordado mantém-se preso a uma estrutura extremamente organizada, lógica – lógica da consciência, cartesiana, a mesma utilizada na confecção de uma história, literária ou cinematográfica. Se existe uma profusão até razoavelmente acertada de elementos em cena, existe uma codificação destes extremamente quadrada, infantil, até. Mais surpreendente ainda se lembrarmos que Gondry é um sujeito bem entrosado com as artes plásticas, multimídias, videoartes e tal.

Um exemplo é a imagem-síntese das erupções existenciais do protagonista: ele, apresentador de TV num estúdio que é meio sua casa paterna, memórias, seus pais etc postos em monitor, num chromakey curioso (veja imagem ao lado), mas tudo muito legível. E dá-lhe papelão, isopor, papel celofane (que serve, aqui, conceitualmente, como liga entre real e imaginação), algodão e geringonças infanto-memoriais. Deste último, não é irrelevante apontar a máquina do tempo de 1 segundo, que pode levar o sujeito para frente ou para trás do tempo presente, e não mais que um segundo; ótima idéia sobre o valor do instante, que poderia servir a todo o filme, e que daria desdobramentos mais próximos aos de Brilho Eterno de uma Mente sem Lembranças.

Stéphane (Gael García Bernal), o protagonista, é um designer mexicano que se muda para Paris a fim de ficar perto da mãe francesa e também trabalhar como ilustrador de calendários promocionais. Ele, delirante, vive entre realidade, sonhos (dormindo) e devaneios semi-conscientes (quando acordado). Nesse lodaçal sensorial que é sua relação com o mundo, ele vai se interessando pela vizinha, Stéphanie (Charlotte Gainsbourg), e será por esse trilho bem definido que a história seguirá: a busca do amor, o encaixe no mundo, no sistema.

O filme é marcado por uma câmera na mão mais atenta à cenografia do que aos passeios pelos espaços ou montagem efetivamente audaz, assim como os diálogos que embaralham os códigos (francês meio espanholado, inglês com acento estrangeiro etc), nomes que se fazem desdobramentos, nonsense de certas situações (a agência onde Stéphane trabalha, seus colegas, um meio anão, o outro um tarado genial). O resultado é interessante mais como passeio lúdico do que como experiência cinematográfica imersa no cosmos do inconsciente. E, se o próprio nome original do filme, “La Science des Rêves”, responde sobre os propósitos reflexivos de Michel Gondry, o estudo fica mais para a dramaturgia noveleira, ou casinha de bonecas infantil, forte-apache da Gulliver reprocessado.

A Freud, deixemos a ciência dos sonhos. A Gondry, talvez... o cinema de Terry Gilliam: e, ainda assim, sob altíssimo risco de 1 a 0 para o ex-Monty Python, porque Medo e Delírio, com todos os problemas, é pelo menos uma viagem insana, trajeto a lugar nenhum, azia total da razão, labirinto na escuridão, abandono dos códigos e procedimentos. Não é sonho; é pesadelo. Dos pesados, e criado graças à ciência (as drogas químicas). O sonho e delírio, para Stéphane, é mais fuga que reflexo do real. Para os chapados de Gilliam, a consciência brutal do mundo. Aos de David Lynch, algo tão expressivo que se faz como experiência alternativa ao mundo, conhecimento de novas fronteiras da existência humana. Que diabos de “ciência do sonho” é essa desse filme de Michel Gondry, então, que mais penumbra que transparece?

Setembro de 2007

editoria@revistacinetica.com.br


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