sessão cinética
Sonatine
(idem), de Takeshi Kitano (Japao, 1993)
por Fábio Andrade
Acordes
dissonantes
Não seria exagero dizer que, em sua carreira como
diretor, Takeshi Kitano possa ser considerado um artesão da demência.
Em toda a esquizofrenia de seus filmes – esquizofrenia salientada
pela sua muito bem sucedida carreira paralela como comediante,
ator e apresentador de televisão, além de outras atividades artísticas
– é justamente esse estado letárgico e um tanto imbecilizado,
das personagens e dos próprios filmes, que parece preponderante.
Pois, muito embora Kitano seja comumente referido como um cineasta
de gênero (o que é apenas meia verdade), sua carreira se dá de
maneira muito mais fluida do que seu legado. Seus filmes não só
passeiam por diversos gêneros – o drama em Dolls; a comédia
pastelão em
Getting Any?; o wuxia em Zatoichi;
os filmes de yakuza em Brother; a paródia irônica em Glória
ao Cineasta!; o romance adolescente em A Scene at the
Sea – como muitas vezes encontram maior originalidade na combinação
improvável desses mesmos gêneros: o cruzamento de comédia com
filme de gângster em
Kids Return e Boiling Point; o
drama policial em Hana-bi; a comédia dramática em Aquiles
e a Tartaruga; etc. Em toda essa diversidade, impera o olhar
para esse sentimento de mundo, essa vivência torpe e inconsequente
que, seja como processo de cura ou como doença, é sempre parte
da trajetória das personagens.
Sonatine descreve este arco dramático com admirável clareza: um grupo de gângsters
precisa fugir para o litoral e esperar por um futuro que, no presente,
não lhes pertence. Com isso, temos uma espécie de O Senhor
das Moscas às avessas, onde vai-se da barbárie para o idílio
apenas para perceber que a barbárie será também levada para o
paraíso – idéia perfeitamente resumida em um tiroteio de fogos
de artifício. A casa de praia não representa um corte, ou um retorno,
mas apenas um breve estado de suspensão que conserva todas as
regras e hierarquias da vivência anterior das personagens. O que
muda, porém, é justamente o comportamento daqueles homens: aos
poucos, o esvaziamento predominante nos trabalhadores do crime
vai cedendo espaço a uma atitude diante do mundo que, senão de
todo positiva, parece mais receptiva à inevitabilidade dos acontecimentos.
Ali, esperando a morte, as personagens parecem vivas.
Takeshi Kitano, porém, não
demonstra interesse em qualquer possibilidade de diagnóstico ou
regeneração. Ao contrário, Sonatine parece sobretudo dedicado
à produção constante de ambiguidades dentro e entre os quadros.
Pois, a despeito de seu fatalismo absoluto e da crueldade frontal
e explícita de sua encenação, prevalece em Sonatine uma
placidez flutuante, com seus assassinatos ensolarados que se misturam
às brincadeiras na areia, com a trilha minimalista de Joe Hisaishi,
e, sobretudo, com um prazer de manipulação imagética que faz com
que todo tiroteio pareça de fogos de artifício. Se
há uma violência real em Sonatine, ela não está nas ações
encenadas, mas principalmente na maneira como essas ações se combinam
com o rigor visual ímpar e quase científico dos enquadramentos
de Kitano, e com uma constante modulação entre planos dissonantes
(cortes do claro pro escuro; da fixidez para o movimento; de um
rosto para outro) e tons de encenação. Se, como em vários outros
de seus filmes, as personagens estão condenadas à morte em causa-e-efeito,
a arte de Kitano não tenta driblar o destino, mas sim desestabilizar
um pouco a leitura dessas causas e efeitos, fazendo o que é hediondo
parecer sereno, e o que é morto parecer vivo. Há uma destruição
em curso, sem dúvidas; mas é uma destruição que não se encerra
na tela, e que vem da tela para a platéia – como os tiros que
são disparados frontalmente contra a câmera, em nossa direção.
Maio de 2010
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