in loco
Uma incursão pelo encontro da Socine
por Cléber Eduardo

Na abertura de seu décimo encontro anual, realizado na cidade de Ouro Preto em setembro, a Socine (Sociedade Brasileira de Estudos de Cinema) aplaudiu a si mesma. O motivo do orgulho foi a constatação, feita pelo pesquisador José Gatti e baseada em uma afirmação de seu colega americano Robert Stam, de que a Socine, pela quantidade de pesquisadores que apresentam trabalhos (foram 207 comunicações), é um dos maiores encontros de estudiosos de cinema do mundo.

Embora seja saudável detectar o interesse cada vez maior pelo cinema e por outras manifestações audiovisuais como campo de estudos, é sempre preciso questionar a relação entre a quantidade de pesquisas e a importância do conjunto e dos percursos delas nesse campo disciplinar: o que se pesquisa? Com quais abordagens? Qual a relevância dessas pesquisas para os próprios estudos de audiovisual? A ambição dos estudos acadêmicos é intervir culturalmente, indo além das cadeiras das universidades e dos seminários, ou limitar-se a condição de fonte bibliográfica? Para que, por quê, para quem e de que forma se estuda cinema? Por que estudar determinado tema e qual a razão do método de estudo empregado?

Por estar o audiovisual mais ou menos naturalizado e legitimado como disciplina acadêmica, levantar essas questões pode parecer atitude retrógrada – como se colocá-las em discussão fosse, digamos, um atentado contra essa legitimidade alcançada. No entanto, diante de determinadas pesquisas e abordagens, essas perguntas devem ser colocadas. Esses questionamentos devem ser uma constante no mundo acadêmico, mas, em algumas apresentações presenciadas, pareciam não ser questão para os pesquisadores. Muitas comunicações não iam aos pontos fundamentais das pesquisas ali expressas verbalmente – seja porque o desenvolvimento dos trabalhos ainda está muito "verde", sem nenhum tipo de proposição para além da exposição do "objeto", seja porque a questão propriamente dita não parece ser exatamente uma questão, mas apenas um interesse ou uma idéia sem fôlego, que se pode esgotar em um breve ensaio.

Se nem sempre as indagações acima foram respondidas pelas apresentações (curtas, de 20 minutos), ao menos se pode vislumbrar, em um encontro de pesquisadores como é a Socine, um painel dos interesses dos estudos acadêmicos nesse momento histórico. Um primeiro tabu a ser quebrado é o da adoção quase exclusiva de "objetos" legitimados pela distância histórica. O espaço pelo qual transitam as pesquisas e análises é amplo e eclético, indo de filmes dos anos 20 até os recém lançados; de diálogos com linhas teóricas até um diagnóstico das ficções científicas nacionais; com olhares voltados tanto para a produção brasileira como para a estrangeira (Peter Greenaway, Lars Von Trier, Pedro Costa, Jean Luc Godard, Peter Brook). Sem ser hegemônico como assunto, o documentário, nesse universo, tem significativa representatividade - sobretudo os brasileiros.

Embora o encontro seja aberto às manifestações audiovisuais, o cinema tem ampla preferência dos pesquisadores, em geral, com enfoque concentrado em um filme ou em um diretor, sem muitas tentativas de trabalhar "questões cinematográficas" que atravessem mais de um filme. Também se percebe uma predominância das análises de tratamento de tema e de discursos sobre considerações estéticas mais específicas. Se não se pode tirar conclusões apressadas a partir disso, certamente é um dado que deve significar algo: tanto algum efeito do próprio momento dos estudos como da nova geração de mestres e doutores. Outra evidência bastante significativa é a abordagem disposta a buscar no cinema apenas uma superfície onde se aplicam ferramentas teóricas e conceitos de outras disciplinas das ciências humanas: enfoques que praticamente tomam o cinema meramente como pretexto.

Não se trata aqui de condenar a interdisciplinaridade, que é mais que saudável quando leva em conta o cinema e o audiovisual como disciplinas com as quais outros campos de pesquisa dialogam, mas apontar o fato de que, nessa interdisciplinaridade, não se pode perder de vista as questões da imagem e da linguagem. Formas visuais são produtos históricos, tanto de suas sociedades (mais diretamente) como de seu tempo (mais amplamente), e surgem como efeitos de contextos, não apenas de autores e subjetividades. É bastante natural que, ao ampliar as questões do cinema para fora das especificidades diegéticas, recorra-se a outros campos. No entanto, quando o cinema passa a ser figuração ou ilustração de linhas teóricas de outros campos do pensamento, está sendo útil, mas sem necessariamente ser valorizado como um meio a partir do qual o pensamento pode ser produzido - e não somente aplicado.

Nenhuma dessas considerações são contra a Socine – muito menos visam, como é moda em alguns recantos, emparedar a Universidade. Pelo contrário. Cinética deseja começar, com essa primeira aproximação, um processo de diálogo com estudiosos de cinema, não apenas para dar voz aos pesquisadores, mas para também colocar em visibilidade toda a dinâmica dos estudos acadêmicos, com seus problemas e sua vitalidade. No caso específico da Socine, é um tanto evidente que, para os próximos encontros, seria mais que desejável uma seleção mais rigorosa (mas não a partir da titulação pura e simples, amparada em hierarquia exclusivamente, e sim, na importância das pesquisas inscritas para os estudos de hoje). Tudo passa por um rigor de avaliação, e resumos sucintos podem ser enganosos e acabar forçando seleções pelo "tema", e não pela forma de articulação desse tema em um texto. Isso porque o aumento do interesse pelos estudos de cinema, embora seja algo positivo em si mesmo, precisa ter equivalência no estofo e no rigor desses estudos. 

editoria@revistacinetica.com.br


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