Quem
Quer Ser Um Milionário? (Slumdog Millionaire), de Danny Boyle (Inglaterra/Índia,
2008) por Rodrigo de Oliveira Filmes
cegos faturam o dobro
Ser
torpe é parte da natureza de tudo aquilo que deseja provocar entorpecimento, uma
concessão à repugnância para que se atinja, eventualmente, alguma suspensão, um
barato qualquer em nome da anestesia dos sentidos. Um paradoxo semântico eterno
e, no caso específico de Quem Quer Ser Um Milionário?, dois frontes bastante
amplos para se cair de pau por onde quer que se deseje – o filme de Danny Boyle
é fraco o suficiente para capitular diante de um sopro do tipo “é simplesmente
inverossímil demais mesmo para um conto de fadas” ou de um ataque de punhos cerrados
como “o que se faz ali é pornografia da pobreza”. O fato é que há ali algo mais
que uma tentativa equivocada de romance de formação e drama redentor, mais do
que a falsa hipótese deste ser um primeiro grande exemplo do “filme global” que
supostamente representaria o funcionamento sócio-político do mundo contemporâneo
em sua própria construção de produção e de linguagem. Aos que ainda se dispõem
com esta frontalidade ao cinema, Milionário é um filme que nos ofende,
franca e abertamente. Desperta um senso de moralidade e uma recusa que é ética
antes de ser estética (ou justamente por causa disso), e nos joga no terreno sempre
pantanoso das coisas-que-simplesmente-não-deviam-ser-feitas – terreno que o próprio
filme nos impele a atravessar sem nos perguntarmos duas vezes. Não
se pode dizer que Milionário seja um filme que Danny Boyle já não tenha
feito antes. Cova Rasa e Caiu do Céu, separados por dez anos, já
traziam malas de dinheiro que iam parar nas mãos dos protagonistas por acaso,
até que as lições aprendidas ao fim de cada trama mostrassem que era o destino
que havia colocado aquela provação em suas vidas, que era através do dinheiro
suspeito e dos pensamentos que ele despertava nos três jovens escoceses pós-modernamente
escrotos ou na criança pura e católica até a ponta dos dedos que se tirariam os
pequenos ensinamentos morais tão caros ao diretor. Ou ainda em Trainspotting,
A Praia ou Extermínio, a dimensão da salvação como um eterno correr
do inimigo, a corrida como a própria matriz dramática dos filmes, sempre em fuga,
sempre esgueirados por aí e perseguidos pelo mal (ou pela câmera). Mas nesse ambiente
de artificialismo pop à moda dos anos 90, dedicado à pura aparência de coisas
que pareciam simplesmente retiradas do contato com o real, de personagens autoconscientes
e quase não-humanos em toda sua explosão de cinismo e savoir faire (não
à toa, num dos filmes eles se tornam zumbis). Eram universos geridos por forças
muito além do meramente ficcional, regras que de fato nasciam e só podiam existir
dentro de produtos de cinema (não à toa noutro filme trata-se de uma ficção científica),
e assim o que parece uma ousadia muito difícil de engolir em Milionário
é que Danny Boyle esteja agora, pecado dos pecados, falando do nosso próprio mundo,
esse aqui, o mundo de verdade. Enquanto se tratava daquela
gente mal-do-século viciada em heroína e cheia de narrações em off muito
espertas ainda havia alguma tolerância, mas mexer com crianças pobres, com as
esperanças e as misérias de todo um povo simbolizado na trajetória de um de seus
filhos mais injustiçados, filmar a Índia como um esgoto a céu aberto e não mais
o esgoto de uma privada classe-média em Edimburgo, isso é, no mínimo, um recalque
imperialista. Mesmo? Danny Boyle foi ao mercado dos estilos e comprou uma dose
de realismo cinematográfico, mas nada em Milionário nos diz que não se
passe disso, de mais um modo plástico de registro da cena misturado a tantos outros
(e aí, dizer que o filme deve muito à estética de Bollywood
equivale a aproximá-lo também de um Satyajit Ray: não se trata de influência,
mas de um esbarrão quase involuntário nestas outras fontes). Há um dado curioso
na recepção do filme que talvez ilumine um pouco o porquê da recusa moral e do
apelo ao real serem os piores caminhos de ataque a Milionário: houve primeiro
uma grande convulsão entre a intelectualidade e a mídia indiana a respeito da
representação do país através suas características mais cruéis (o que lembra,
por exemplo, a recusa inicial da nossa Cinédia nos anos 30 em filmar “pretos,
pobres e vadios” porque não era essa a imagem do Brasil que se queria expor ao
mundo – que se filmassem os palacetes da aristocracia e a gente branca e bem vestida,
portanto). Daí o filme veio a se transformar no fenômeno mundial em que se transformou,
e então outra parte dessa mesma intelectualidade e desta mesma mídia surgiu para
afirmar que aquele registro das entranhas do país estava cada vez mais limado
do cinema local e que era fundamental se filmar aquela gente, naquelas condições,
filmar as histórias das favelas. No meio disso tudo, um
bilhão de pessoas que não tinham nada a ver com isso e que, durante a cerimônia
do Oscar, repetiram à frente das televisões do país inteiro aquele mesmo dispositivo
existente no próprio filme quando Jamal está perto de ganhar 20 milhões de rúpias
no programa de tevê: pessoas pobres, essas mesmas sobre quem se regulava o direito
ou não à representação em filme, torcendo em grupos por aquele pequeno-que-chegou-lá
(o filme independente ou o garoto do chá). A que Índia pertencem? E qual é a Índia
certa a se filmar, hoje? Não existem respostas a essas perguntas. Mas existe sim
um objeto, a possibilidade de tomá-la como objeto, e se é aí que Danny Boyle salvaguarda
suas convicções estéticas e a própria viabilidade de seu filme, é também o lugar
de onde surgem suas maiores limitações. E a raiz dessas limitações está na figura
do protagonista e de tudo o que ele joga sobre a trama. Mais
que um jovem de um estoicismo quase irritante, de um apaixonado incontornável
ou de um herói-da-gente, Jamal é a representação do bem absoluto. Não há um momento
sequer em que sua retidão moral seja abalada, e mesmo quando dá sinais claros
de malandragem, ela não tem outro propósito que não proteger sua existência e
a justeza de sua luta – se perdoamos o Cristo irascível expulsando os infiéis
do templo de chicote em punho, por que não haveríamos de perdoar um menino santo
que engana alguns turistas para ter o que comer e,
assim, seguir em sua épica jornada? Se sua aparição e seu destino são bíblicos
(um dos muitos sentidos para o “está escrito” que é leit motiv da trama),
se luzes “divinas” emolduram o rosto do menino mesmo quando está sentado à fossa
sanitária mais imunda, e se é justamente em nome das mais renitentes tradições
da narrativa ficcional que o filme se constrói, não há bem absoluto que se sustente
com o mínimo de viabilidade, apelo e identificação sem que haja, em oposição a
ele, o mais absoluto dos males. Não é apenas o caso de Jamal atrair para perto
de si toda sorte de vilões: sua própria presença santificada em cena parece tornar
os vilões mais vilões ainda, mais espúrios do que eram antes de se confrontarem
com aquele que, de fato, pode fazê-los sucumbir. E o absoluto não se impõe pela
compreensão, pelo raciocínio ou pelo mero engajamento: ele depende da crença.
Mas Milionário não funciona como a grande bola de
fogo metafísica de Sunshine, que atraía adeptos tão devotos a ponto da
entrega voluntária de seus próprios corpos pelo simples fato de que apresentava
uma alternativa palpável a toda grandeza e transcendência, ali disponível diante
dos olhos: aqui o caso não é nem falar de realismo, mas de um mundanismo, de estratégias
de comoção e adesão bastante terrenas, físicas (se manifestam no corte, no paralelismo
das ações, nas idas e vindas entre uma pergunta lançada ao acaso e uma resposta
conseguida pela experiência do destino, na disposição de atores-mirins diante
das maiores atrocidades, na construção pictórica dos espaços e das situações,
na manipulação das cores). O absoluto simplesmente não sobrevive quando está assim
tão ao nível do chão. E Milionário é um filme rasteiro justamente porque
a ele não interessa nada que não esteja disposto imediatamente na superfície,
aquilo que está inscrito na própria imagem e que dela se pode absorver
sem muita perda de tempo (corre-se muito, lembram?). Se
a câmera percorre a favela em uma seqüência eletrizante é menos porque há na experiência
da favelização essa mesma carga de tensão e expectativa constantes e mais porque,
oras, uma favela é também um labirinto, é também um tabuleiro cheio de obstáculos
por onde uma perseguição pode se dar sem ter que obedecer à chatice de uma linha
reta. Os planos aéreos dos subúrbios de Mumbai dão conta exatamente disso: estamos
distantes do clima de presságio que há, por exemplo, no sobrevôo inicial de Bug
e muito mais próximos do esquadrinho pictorial de Dogville – quando vê
telhados aglomerados ad infinutum, a câmera de Milionário não enxerga
miséria nem sofrimento, ela enxerga forma, linhas sem relevo, é este o seu interesse.
Esta mesma lei que permite ver no conflito étnico entre hindus e mulçumanos não
mais que a chance de uma seqüência de ação que carregue em adrenalina e trauma
potencial (incendiar a mãe dos meninos não passa disso), ou ainda ver no irmão
mau não mais que o bandido de aparência embrutecida mas de bom coração (o menino
Salim de fato chega a dizer “o homem com a Colt .45 disse para calar a boca”,
num enquadramento copiado de Dirty Harry). É assim
que o filme aparentemente mais colado a um senso de realidade é aquele que se
esforça em mostrar-se o mais fabricado possível, o que teoricamente estaria lidando
com pessoas de verdade e dramas relacionáveis está mais colado à tipificação,
onde o único dado aproximativo é que os personagens são interpretados, bem, por
humanos. O amor vence tudo, o dinheiro é um meio mas nunca fim (na seqüência final
vemos Jamal recolher Latika como prêmio, mas nunca saberemos como e se de fato
recebeu os milhões conquistados na tevê), e podem todos os fiéis deste filme-igreja
se rejubilar num grande espetáculo de dança, onde
se grita, à moda dos cultos e do cinema-de-superação, “vitória!”. Mas de onde
surgem essas centenas de pessoas que se juntam a Jamal e Latika na estação de
trem e com as quais o casal mantém uma relação tão íntima – todos ali, afinal,
dançam os mesmos passos dos protagonistas, dividem um mesmo ritmo e uma mesma
energia. Seriam remanescentes da colônia de meninos de rua que o filme abandona
tão logo Jamal escape de lá? Ou aqueles que o abordam do lado de fora da janela
do carro, quando ele está a caminho da última pergunta no programa? Mais ainda,
são aqueles mesmos que assistirão sua performance agrupados em frente às televisões
país afora, reconhecendo nele um representante legítimo de si mesmos? Ora,
essas pessoas todas, ignoradas enquanto demografia e enquanto espírito componente
desse universo que o filme constrói para si, pertencem a um outro mundo, este
sim talvez minimamente relacionado ao nosso. São espectadores, como nós, deles
se exige ao longo do filme torcida, identificação e celebração. Mas sua própria
fisicalidade, sua imagem na tela, suas expressões e fisionomia, a colocação em
ambientes de origem que não são nossos, mas deles e só deles, nos dizem que dessas
pessoas é impossível retirar essa marca de que existem ali enquanto dado do real.
Nelas Quem Quer Ser Um Milionário? também quer enxergar apenas formas,
mas gente não é telhado. O que há de “bizarramente plausível” aqui não é o fato
de que cada tragédia da vida de Jamal se encaixe perfeitamente na trajetória televisionada
de sua redenção. É que Danny Boyle, de fato, esteve diante da tragédia em seu
grau mais agudo, foi até onde a miséria humana precisa do menor esforço de maquiagem
para se marcar como realmente miserável e passível à compaixão, identificação
e engajamento, mesmo do mais inabalável dos observadores. E ainda assim, com tudo
o que estava lá, à mostra, disponível aos olhos e aos sentidos, preferiu-se levar
às últimas conseqüências o que “estava escrito” antes mesmo de se chegar à favela,
ao programa de tevê, à delegacia, à timidez intelectual da causa-e-efeito, do
menor dos circuitos possíveis. E aí não é mais uma questão de acaso ou destino,
mas do mais puro desejo de ignorância. Março
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