Os Simpsons - O Filme (The Simpsons Movie),
de David Silverman (EUA, 2007)
por Paulo Santos Lima

Rebeldia controlada, e bem mostrada

O humor se faz ácido na medida em que se aproxima da realidade da qual zomba. Nas comédias norte-americanas, há exemplos de mordacidade feroz, mas sempre com “áreas de escape”, ou seja, ambigüidades que atenuam as críticas. Um terreno pantanoso e enevoado, porque, na prática, ao mesmo tempo em que o filme bate, ele também assopra. Isso está no melhor do gênero, e Os Simpsons - O Filme não será uma exceção. O que não chega a ser um demérito, e mais uma característica que chegou até mesmo no cinema dos geniais irmãos Farrelly, pelo menos desde Ligado em Você.

No caso do filme de David Silverman, a família Simpson, longe de ser a parte do todo, é parte de um organismo apresentado no filme, e comunica-se com outros seres, famílias, criando relações entre as várias coisas do mundo (atual, porque o diálogo, claro, tem de fazer eco com a contemporaneidade, a fim inclusive de fortalecer a legitimação das piadas e seu humor). Nisso, por exemplo, este Os Simpsons difere das comédias do britânico Monty Python, cujo humor e poder demolidor são sem limites e atemporais, menos comportamental e mais existencial, universal (e, por isso, político) — a troça que fazem sobre a sexualidade ocidental em O Sentido da Vida e sobre a Bíblia em A Vida de Brian, por exemplo. Mas o longa norte-americano, ainda que com mira mais fechada aos seus objetos, e bem mais ciente dos limites os quais não pode bem ultrapassar, faz um painel comportamental dos EUA bocado interessante.

Adotando esse “caminhar em terreno seguro”, com deslocamento de alvo, temos a brilhante transmutação (e fusão?) entre Arnold Schwarzenegger e George W. Bush. O presidente do país é Arnold, e seu assessor, um cara que muito lembra Bush, e que comandará uma força tarefa absurda e fascista, lacrando a cidade de Springfield com um tampão, para evitar que sua poluição se espalhe pelos arredores americanos. Poluição esta, combatida por Lisa (ridicularizada nesse papel de ativista pró-meio-ambiente), e potencializada pela irresponsabilidade de Homer Simpson, o pai, que adotou um porco (afetiva e quase sexualmente, até).

O grande fio condutor da história é o papel paterno de Homer, um tanto irreverente e fora dos padrões “saudáveis”, algo que vai de jogar o filho Bart pelo telhado a expô-lo pelado pelas ruas. A negligência será algo a ser reformado, e a ambigüidade do primeiro tempo do filme tomará partido no terço final, pois somente como pai presente e vigoroso Homer poderá restaurar a célula familiar e, mais importante, a paternidade. Paternidade, aliás, bem física, terrena, porque uma coisa que o filme não crê é na existência de Deus: uma ausência total, debochada na feitiçaria que Homer faz para retomar seu exercício de chefe de família e no belíssimo plano que mostra, no momento do ataque à cidade (pelo Governo, vale relembrar), um bar e uma igreja com seus freqüentadores trocando de porta, ou seja, os bebuns recorrendo a Deus ao passo que os fiéis trocam a reza pelo copo de uísque.

Essa elegia à família como base existencial, e a comunidade como base política não deixa de manter o discurso do filme nos arreios. Em tom cínico, arranca-se a máscara das hipocrisias, deixando desnudadas intimidades comportamentais e culturais americanas, ao mesmo tempo em que se promove uma irreverência e liberdade controladas, ou melhor, mais enquadradas num “politicamente correto”.

Se longe da anarquia do grupo inglês, Os Simpsons – O Filme se faz potente pelo que é como cinema. Não a mise-en-scène de um Os Incríveis, ou o cinema moderno genial feito pelo Jerry Lewis diretor, coisas bem longe daqui, mas pelo timing (necessário para as comédias), punhado de imagens bem resolvidas como “esquetes visuais” (como a supra-citada cena do bar-igreja), e pelo roteiro, cujo diálogos são extraordinários. Se o bom humor aqui se faz muito pelas correlações possíveis entre o que antecede o filme e o que se vê na tela (como o ambiente político-cultural mundial e o próprio seriado em sua versão original televisiva, verdadeiro objeto de culto), é nessa costura bem realizada entre texto, imagem e montagem que constrói sentidos bastante ricos.

É isso que liberta Os Simpsons de ser uma versão estendida de seus episódios na TV; o longa-metragem tendo sua própria dramaturgia, apresentando os personagens sem sufocar a platéia com didatismos ignóbeis: os seres estão lá, na tela, em sua concretude e evidencia como imagem, fazendo suas tarefas cotidianas, captados em pleno momento da ação e daquele momento diegético, independentemente de algo prévio, como o que são no seriado, o que seria um caminho fácil para massagear os fãs.

Bem distinto da fidelidade doentia da série Harry Potter aos livros de base. Ou de Cidade dos Homens, o longa de Paulo Morelli, que fica a todo instante emulando um repertório (visual, mas sobretudo dramático) da dupla Acerola e Laranjinha, possivelmente por uma franca anemia em construir um universo mais arejado, menos preso às soluções de roteiro, às viradas. Nisso, a recolocação de peças em Os Simpsons – O Filme, ambígua no que tem de endosse e rebeldia, é francamente mais cínica, e, se é possível dizer isso sobre um desenho animado, mais bem filmada.

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