Simonal - Ninguém Sabe o Duro que Dei,
de Claudio Manoel, Micael Langer e Calvito Leal (Brasil, 2008)
por Cléber Eduardo

Construção de um mito, desestigmatização de um suspeito

Ao relacionar o subtítulo com uma música, cuja letra está colocada em primeira pessoa, Wilson Simonal – Ninguém Sabe o Duro que Dei, de Claudio Manoel, Calvito Leal e Micael Langer, cola-se a um desabafo de seu protagonista. No título, ele é vítima, ignorado em seu esforço. No documentário, é um mito, que, por ter se tornado um mito, cavou sua sepultura, onde o jogaram e não o exumaram. Em outras palavras, o trio de realizadores joga holofotes multicoloridos sobre a sombra a envolver Wilson Simonal, que, do sucesso inebriante na virada dos 60 para os 70 à marginalização cultural a qual foi submetido (não sem dose de responsabilidade própria), conheceu o céu e o inferno em contexto de radicalizações políticas.

Em momento de música engajada e outras atitudes contra o regime militar, cantar para multidões sem palavras politizadas, como fazia Simonal, e gravar declarações de amor ao país, como “Patropi”, sua versão de “País Tropical”, já era suficiente para ele ser visto como pão e circo, como um colaborador inocente ou estratégico dos milicos. Não importa se Simonal era o rei do pop brazuca, se era produto da cultura industrial dos anos 60/70, se tinha popularidade só comparável a Roberto Carlos ou se reinava absoluto como pilantra musical, com suas performances debochadas. Importa é que, em dada circunstância, ainda hoje não devidamente esclarecidas, ele pisou nos ovos. Isso ao menos para o Brasil dos anos de chumbo, segundo Ninguém Sabe o Duro que Dei. E o percurso do protagonista no documentário, a partir das frases sobre ele escolhidas para o corte final, é claro nesse sentido. Busca-se mostrar como, em uma época na qual a política estava acima da arte e a cultura era sinônimo de posicionamento diante do poder, o pop hedonista precisou apenas de um passo errado de seu star para ser condenado à fogueira da História.

Portanto, se podemos extrair algo da soma dos sons e imagens de Ninguém Sabe o Duro que Dei, é a defesa, sempre pela incorporação do discurso alheio, da cultura de massa sobre a cultura política. Desde o início, quando uma iconografia colorida permeia os letreiros, essa cultura de massa, pela própria manifestação dela no corpo e na voz de Simonal, tem algo de ingênuo. Está mais para os anos dourados, o Rio dos anos 50 (reverenciado com saudosismo, logo no início, pela voz de Chico Anísio), nascedouro de Brasil moderno, do que para os anos de chumbo, que são vinculados a uma doença política anti-artística. Ser garoto-propaganda da Shell, como foi Simonal, é um índice de sucesso a ser celebrado, como constatamos nas imagens e nas entrevistas. Sobretudo se o sucesso incorporar algo de democracia social e racial, com ascensão sem precedentes (a não ser Pelé) de um negro no alto consumo e na popularidade conseguida na televisão. O período de afirmação e explosão no pop e do pop brasileiro é visto como período de alegria e de um Brasil dançante e sorridente diante de suas dificuldades.

Informar pelo relato de experiências (vozes das testemunhas e do empirismo), legitimar com argumentos musicais (vozes do saber) e comprovar com imagens de arquivo (vozes dos indícios). Esses são os três tijolos estruturantes de Ninguém Sabe o Duro que Dei. Os relatos de experiências são compostos de trechos de entrevistas com os próximos de Simonal (seus filhos Simoninha e Max de Cristo, Chico Anysio, Nelson Motta, Pelé, Sergio Cabral, Miely). Contam anedotas, enchem a bola do cantor, demonstram fascínio por seu carisma na condução de multidões em shows, mas também reconhecem seu egocentrismo, sua máscara, sua marra e o espírito de playboy, de ostentador de ascensão social e consumista esbanjador. As vozes do saber são empregadas para acreditarmos nas afirmações superlativas sobre Simonal. Um cantor do olimpo da música popular, o rei do pop brasileiro dos anos 60, o maior cantor do Brasil.

Por meio do terceiro tijolo fundamental, as imagens de arquivo (provas das afirmações), vemos o tamanho do carisma de Simonal, um maestro da “massa”, que rege 40 mil pessoas sem adulá-las. Portanto, após uns tantos minutos, nos tentam convencer de que, apesar de mascarado, Simonal era um cara para se tirar o chapéu. Sem dúvida, em cima de um palco, comunicando-se com a platéia, Simonal é um show. Uma mise-en-scène que faz pulsar um plano fixo. E o anedotário em torno dele, também, tem seu charme e seu humor.

No entanto, como sabe quem é minimamente informado sobre Simonal e como fica sabendo pelo documentário quem nada sabia sobre o cantor, houve o Dops. Por conta de uma má contada troca de acusações entre ele e um contador, que envolvia processo trabalhista da parte do funcionário e denúncia de roubo da parte de Simonal, o cantor foi considerado responsável pela tortura do contador. Teria terceirizado os maus tratos para agentes do Dops. Essa relação com os “homens”, no começo dos anos 70, governo Médici, jogou a elite cultural-artística contra Simonal. Lançou-se sobre ele a suspeita de ter entregado colegas artistas para a polícia. Ninguém Sabe o Duro que Dei enfrenta sem pudores o “diz que me diz” dessa maldição responsável pela marginalização de Simonal, mas sem tentar inocentá-lo como se essa fosse a causa do projeto. Mostra-se a complexidade de sua personalidade e as diferentes visões sobre essa personalidade por parte das vozes do saber e da experiência.

Se a inocência ou a culpa não são questões, a questão está na solicitação de redenção, ainda que na morte, ao menos para a reconstrução de uma memória, que se restrinja ao valor musical de Simonal, sem levar em conta as razões de seu estigma político e de suas feridas éticas. Sem nenhum estímulo estético qualquer, operando uma soma de “frases ditas”, fotos e imagens de arquivo, o resultado nos convida a, por meio de suas vozes, embarcar na fase de sucesso e relativizar a de queda. Nesse sentido, Ninguém Sabe o Duro que Dei, como sugere o título, é sobre o Brasil que desperdiça talentos, entre outros motivos por conta de uma “tarefa para a arte”. Não se pode dizer que, ao fazer isso, o documentário não esteja, a sua maneira, cumprindo uma tarefa: o da mitificação de um ídolo caído e o da desestigmatização de um ídolo manchado por ações extra-artísticas. O estímulo estético, no caso, fica com Simonal. Suas performances nos programas de auditório, no Maracanãzinho e em um show com Sara Vaughn, no mínimo, jogam para o alto a experiência de ver Ninguém Sabe o Duro que Dei.

Abril de 2008

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