Ilha do Medo (Shutter Island),
de Martin Scorsese (EUA, 2010)

por Paulo Santos Lima


A encenação da encenação

Um barco surge da massa enevoada, revelando-se aos nossos olhos. Em seguida, dentro dele, vemos o protagonista, Teddy Daniels (Leonardo DiCaprio), tombado no vaso sanitário, vomitando agonicamente. Vencida a ânsia, ele se levanta ao espelho, fitando-se, rosto a rosto. Nesses primeiros planos, Ilha do Medo já entrega qual será seu jogo: um filme de mistério, cuja revelação perpassa literalmente a cabeça do personagem principal – cabeça e rosto, que neste caso será uma máscara de aflição, ódio e terror. É Martin Scorsese ainda pisando em seus temas caros, como a violência e a agonia humana diante do mundo ameaçador, mas como o cineasta cinéfilo que relê outros cinemas ao limite da iconografia. Agora, arvorando-se no gênero do mistério, o que significa, essencialmente, uma radical mudança na medida em que a estrutura narrativa privilegia o flashback e não o tempo presente da diegese, algo até então premente e potente em seus outros filmes. Se antes a encenação, estilizadíssima e formalista (e quase maneirista sobretudo a partir de Gangues de Nova York), estava a serviço da narrativa, agora ela é a grande questão e tema neste Ilha do Medo.

O sonho, essa grande encenação surrealista que fazemos em momento de inconsciência, será um dos campos de revelação e material que surgirá aleatoriamente para elucidar o mistério. Sonho e alucinação, e justamente do protagonista que é o herói do filme, um policial federal que vai, em 1954, a um hospício localizado numa ilha isolada em Boston para investigar o desaparecimento de uma paciente, e também encontrar o assassino de sua esposa, supostamente internado no mesmo lugar. E a aleatoriedade do que é revelado pelo filme nesses delírios do protagonista, que parecem nos vir aos fragmentos desmantelados, talvez justifique um tanto demais o estilo híbrido que o Scorsese cineasta-cinéfilo adota para seu filme.

Assim, se num filme como O Aviador o norte visual eram os clássicos dos anos 30-40, neste Ilha do Medo há uma enorme cartela referencial. E que não importa aqui, porque as tantas referências citadas pelo diretor e ecoadas em resenhas críticas e textos informativos são releituras que saem dos trilhos: o melodrama dos anos 50, nas seqüências de sonho de Teddy Daniels com sua falecida esposa, é um devaneio que está mais para o cinema chinês contemporâneo; a violência subterrânea ao homem é um tema a ver com Fritz Lang, mas também com todos os filmes de Scorsese; os filmes B e suas temáticas referentes ao nazismo do pós-guerra e à Guerra Fria e bomba atômica são, como diz o termo, um mero tema. Há um resultado visual mais a ver com o cinema contemporâneo, assinado por um Scorsese reverente ao gênero do thriller psicológico de mistério, e adotando uma espetacularização over, com câmera olhando do alto ou sobrevoando espaços, cenografia mega, arquiteturas colossais, efeitos visuais típicos dos filmes de fantasia, trilha sonora puxada das grandes salas de som.

Não é estranho. Estamos numa história sobre o curto-circuito de um homem num mundo tomado pelo enguiço. Uma história que nos chega, quase expressionista, boa parte das vezes intermediada por este homem. O registro não é direto, da ordem da evidência textual/visual, como costumam ser os policiais de Scorsese. Tudo é intermediação, reconstituição, parte de algo, adição de elementos alienígenas. É disso, sobretudo, que se justifica o delírio do diretor, em sua militância cinefílica, em puxar para si tantos cinemas, tantas homenagens e exercícios. Esses vários tantos cria um frenesi de registros, ao longo do filme, que não trabalha na idéia de uma ordem narrativa que avança com o esclarecimento, mas sim com uma lógica infernal que legitima uma série de canais. Os internos terão tanta autonomia no discurso quanto o médico do presídio, Dr. Cawley (Ben Kingsley), que pendula entre o idealista de esquerda e o macarthista responsável por um projeto de lavagem cerebral. Todas as informações passam por alguém perturbado e que sabe muito pouco, que recolhe do espaço de parque temático da ilha uma série de itens que o levam sempre para si próprio.

Em termos práticos, visuais, temos em cores frias e encenação mais sóbria o que ocorre ao nível da evidência emparelhado com um “surrealista” universo de memória, sonho e alucinação de tons e cenografia carregados. Uma história sem passado e presente, pois ambos dissolvem-se pelo viés alucinógeno, vindos de uma mente em pane. Se Teddy Daniels enxerga as coisas tais quais Martin Scorsese as concebe para seu filme na tela (o que é uma inerência da relação entre autor-personagem), então podemos dizer que Ilha da Morte é uma obra reverente à idéia da encenação ser um meio de reconstituição (e encontro) da realidade. Não por menos, Dr. Cawley tem na encenação teatral um dos métodos para colocar os dementes mais graves no universo da realidade. Digladiam-se Teddy e Cawley, o exploitation e a boa norma e medida narrativas, a escolha estética insana e a escolha acertada para um determinado efeito, o descontrole e o controle. Teddy é, também, o colorido hemorrágico versus a sobriedade das cores mais frias, freadas, a ver com Cawley. A encenação vira a chave do enigma: o que é e qual é a encenação da verdade, uma vez que a verdade do filme tem a ver com sua encenação?

Martin Scorsese, cineasta formalista desde sempre, vem fazendo, nos últimos anos, um cinema que mais dialoga com outros cinemas (onde tudo que surge na tela advém de uma citação anterior ou paralela, reencenada, relida e vertida) do que consigo próprio, como fora com Os Bons Companheiros (1990), por exemplo. Assim como Teddy Daniels, Scorsese está, hoje, mais aberto às imagens que não são suas. São estilos, os dos seus filmes recentes, a ver com imagens anteriores, que fazem parte de outras experiências, históricas, de história do cinema mesmo. Uma mente criadora um tanto perturbada com a louca intenção de se voltar a essa História do Cinema com certa solenidade, bem distinto do modo como um Quentin Tarantino, por exemplo, lida com o cinema. Tarantino é devasso. Scorsese, um católico de fé. Encontrar um modo sacro para lidar com pilhagens, seqüestros e cópias é meio caminho para a insanidade cinematográfica. E é dessa desmesura um bocado hemorrágica, frequente nos últimos filmes do cineasta, que uma fita como Ilha do Medo torna-se bastante feliz.

Março de 2010

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