em processo
Eternos sertões
por Lila Foster
(fotos de divulgação)

Uma multidão fez parte da gravação do DVD de Os Sertões entre os dias 24 fevereiro e 25 de março em São Paulo. A vontade de participar de um espetáculo do Teatro Oficina já podia ser sentido durante a espera nas longas filas que se formavam muito antes da abertura da bilheteria. Todos pareciam estar preparados para uma entrega física intensa e ansiosos por habitar, por algumas horas, um lugar outro onde a libido, o corpo e o desejo estariam mais libertos (desejo este já incorporado ao imaginário e pré-concepções sobre o teatro de Zé Celso). O que a gravação do DVD trazia de novo era a observação do processo de captação (relação dos câmeras com os atores, gruas, grande equipe) e também a materialização do espetáculo como registro passível de reprodução – portanto, indo além do momento único que é a apresentação teatral. Na inter-relação entre cinema (audiovisual) e teatro, o vídeo conferiria longevidade material ao espetáculo ampliando o seu alcance no tempo e no espaço devido a sua reprodutibilidade. E quem pôde presenciar pelos menos uma de suas apresentações sabe e sente a grandiosidade – aqui em todos os sentidos – do projeto, e a necessidade absoluta de seu registro.

A realização de um DVD de Os Sertões é parte integrante de um processo marcado por um mergulho intenso na obra de Euclides de Cunha e na atualização histórica de uma série de conflitos que estão no cerne da problemática brasileira (como a disputa pela terra, a repressão exercida pelo aparato estatal para com a parcela mais pobre da população, a religiosidade, etc). Trata-se de uma rede que vem sendo tecida durante anos, que inclui viagens para o sertão de Canudos, leituras com o público dos textos de Os Sertões, a formação de novos atores vindos da comunidade vizinha ao teatro (no bairro do Bexiga), a disputa territorial contra o empresário Sílvio Santos (que tem um projeto de shopping em torno do Oficina), chegando até os ensaios abertos que culminaram na montagem desta saga dividida em 5 partes – A terra, O Homem I, O Homem II, A luta I e A luta II.

Perceber esta multiplicidade ajuda a compreender que a gravação do DVD não se tratou de uma simples captação em vídeo de uma peça de teatro. O trabalho do Teatro Oficina é guiado esteticamente por conceitos como experiência e participação, que marcam profundamente a relação diretor-ator-espetador-espaço cênico. Com a gravação do DVD esta relação é ampliada para a câmera, um novo diretor e olhar sendo que o diretor Zé Celso teve a maestria de juntar uma equipe intensamente apaixonada colocando a tecnologia a favor de um processo coletivo de criação, dispensando a autoria em nome da formação de uma multidão criativa: atores, câmeras, diretores e público. Isso em nenhum momento significou um afrouxamento do controle e da racionalidade que a criação audiovisual requer e nem uma dissolução dos pápeis/trabalho de cada um.

Coordenado por Zé Celso, mas tendo cada parte um diretor diferente – Tommy Pietra (A Terra), Fernando Coimbra (O Homem I), Marcelo Drummond (O Homem II), Elaine César (A Luta I) e Erik Rocha (A Luta II) – o projeto de gravação do DVD foi tão grandioso quanto a montagem do espetáculo. Dividido em cinco equipes, cada diretor coordenou o trabalho de dez câmeras (algumas fixas, outras circulando pelo teatro, uma steady cam e uma grua), trabalhando em conjunto com um diretor de fotografia e um assistente de direção. As equipes, que tinham algumas variações de acordo com cada diretor, passaram por intensas sessões de ensaio durante as semanas que antecediam as apresentações do fim de semana. Além da exigência física, o trabalho de decupagem deveria dar conta da multiplicidade de espaços cênicos (de atuação) dentro do teatro desenhado por Lina Bo Bardi. 

A arquitetura do Teatro Oficina (uma pista longa ladeada por arquibancadas, estruturas suspensas e paredes de vidro – além de um teto retrátil e um “porão” ao longo da passarela) sugere uma multiplicidade de espaços de atuação em meio aos quais o espectador, dependendo do lugar que se posiciona, vivencia uma peça completamente diferente, tendo que construir a todo momento uma contiguidade entre diferentes focos visuais. Esta fragmentação se unifica com o “evento” que é participar da peça. Para o DVD, esta unidade deveria ser garantida pela decupagem – e para isso, o espaço do teatro foi minuciosamente mapeado. Cada câmera deveria “tomar conta” de um setor ou acompanhar núcleos narrativos/atores principais – algumas ficavam na pista acompanhando e vivendo o frenesi do espetáculo, acompanhando tudo mais de perto, enquanto outras ficavam fixas por quase todo o espetáculo.

Tudo isso exigia dos diretores um profundo conhecimento das montagens, o que foi garantido em parte pelo envolvimento anterior da maioria deles: Tommy Pietra participou da dramaturgia de Os Sertões, Fernando Coimbra e Marcelo Drummond (que personifica Euclides da Cunha) são atores na companhia e Elaine César foi responsável pela produção videográfica e por diversas projeções durante os espetáculos. Apenas Eryk Rocha, o único dentre os diretores com uma trajetória mais especificamente “cinematográfica”, surgiu como um elemento novo (mas, para vermos o quanto os elementos são assimilados pelo Oficina, basta citar que a irmã e assistente de Eryk, Ava Rocha, acabou participando do elenco ao longo do processo de preparação do trabalho).

Todo este trabalho prévio está registrado e pode ser conferido no site do Teatro Oficina Uzyna Uzona. Lá também os cinco diretores escrevem sobre os fundamentos que guiam a direção de cada episódio. Tendo como princípio comum garantir a cobertura da ação lógica de cada peça, cada diretor estabeleceu uma relação única com o material filmado. Isso era perceptível principalmente pela disposição das câmeras – algumas montagens davam mais atenção para o entorno, a reação do público outras privilegiavam os planos próximos, a movimentação intensa em cena ou a continuidade da ação pelo plano-seqüência. A fotografia também tinha um papel definitivo nesta diferenciação: desde A Terra, de movimento mais alegre, que tinha um colorido muito mais intenso; até A Luta II, mais sombria e carregada pela derrota e o peso da morte. 

O desafio maior para a direção, no entanto, sem dúvida era transpor para o formato audiovisual a imersão sentida pelo espectador durante o espetáculo.  A disposição corporal do espectador do Oficina é aspecto fundamental para a mise-en-scène, e se dá de forma muito diferente no teatro e no cinema. Manter a força deste envolvimento parecia ser algo quase impossível já que a experiência de assistir uma peça no teatro inclui desafiar o próprio corpo: os limites da vontade, a exposição do sexo e do prazer e se colocar em cena (seja como voyeur ou parte ativa do espetáculo), dançar, cantar, erguer-se para ver o que acontece do outro lado do teatro. O espectador do DVD teoricamente só poderia ter acesso a uma forma de recepção já que o posicionamento é fisicamente distanciado e inerte. O espectador neste caso não estaria ativo da mesma forma que no teatro.

É aí que os pequenos flashes do material que estava sendo captado (uma equipe cuidou especificamente de uma “edição ao vivo” que foi transmitida pela internet nos dias dos espetáculos) mostraram uma nova dimensão possibilitada pelo audiovisual. O uso das várias câmeras e da edição certamente darão ao espectador do DVD um ponto de vista privilegiado, pois lhe dá acesso a todos os espaços do teatro. Menos fragmentado, o envolvimento não se dá pela presença in loco, mas por uma certa onisciência do olhar que pode agora se dar a conhecer de forma muito próxima cada pedaço do teatro e ação dramática. Fora isso, a intensidade da peça transborda para a tela pela sua riqueza de texturas, pelos planos próximos e pela plasticidade do desfile dos corpos nus, a terra, a água, o fogo e principalmente pela força da trilha sonora do espetáculo.

A transmissão ao vivo também permitiu a construção de uma multidão virtual, pelo menos como horizonte possível, cujo formato de recepção configura um novo espaço de projeção e alcance da produção do Teatro Oficina. Encarar a internet e as novas tecnologias como mais uma ferramenta na libertação e na construção do que Zé Celso chamou de “uma atmosfera Cósmica Cyber Tátil” reflete uma postura artística quase impossível de ser vista atualmente. Vindo do mergulho na tradição modernista, na antropofagia, no Tropicalismo e no Cinema Novo, Zé Celso e a multidão de artistas integrantes do Teatro Oficina (foto ao lado) construíram o que poderíamos chamar de uma obra de arte total: pela a articulação dos temas escolhidos, os meios de expressão, as questões sociais e a forte atuação política. Ver e sentir este universo impossível de ser vivido sem ser cinema, teatro, música, literatura, guerra, nascimento, beleza, desafio e principalmente paixão foi um privilégio, algo marcante para todos que participaram ativamente de todo o seu longo processo. Poucas vezes vi uma equipe técnica tão envolvida, tão cúmplice dos atores, e ao mesmo tempo atenta e entregue para o trabalho que ali estava sendo realizado. O registro audiovisual deste trabalho intenso perpetuou o momento ao mesmo tempo em que trouxe uma nova feição à encenação de Os Sertões, vista agora através de outros olhos e para cada vez mais olhares. Evoé.


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