in loco - cobertura do É Tudo Verdade

Separações (Separations),
de Andrea Seligmann Silva e Mieke Bal (Holanda, 2009)
por Cléber Eduardo

O mundo em mim

Em Separações, são tênues os limites entre a exposição das situações e informações diante das quais nos sentimos na prática consentida de um voyeurismo e a ampliação do íntimo para o quê há de interesse público nos extremos do particular. Andrea Selligman, diretora, protagonista e narradora, é essa fronteira, sempre movediça, sempre comprometida com a crueldade do tom franco, por isso sempre desconfortável, tensa, intensa, sempre emocionante e emocionada. Ela escancara memórias e feridas extremamente pessoais (dela e de sua família), com testemunhos e expressão de sentimentos aparentemente nunca vividos antes da presença da câmera, mas tem como matriz dessas questões íntimas uma circunstância histórica traumática: o exílio dos avós maternos (Alemanha para Brasil), durante o nazismo.

Com todas as particularidades expostas, com todo um tom de filha assumindo sua carência de mãe, e mãe colocando-se também como mulher cidadã, há uma sombra de “grande explicação”. Não é por coincidência que, em mais de um momento, Andrea salienta que dos cinco filhos de sua mãe, quatro moram na Europa, casaram-se com europeus, têm algum tipo de mal estar com o Brasil. O exílio forçado como matriz dramática de Separações também é o diagnóstico de Andrea para uma crise de depressão de sua mãe. Estaríamos diante de uma auto-radiografia da geração seguinte à dos exilados do nazismo, que olha para sua experiência em seus dados mais particulares como reflexos do processo histórico vivido por suas mães – ao menos se houver pertinência na hipótese de a narrativa partir do exílio e do nazismo como matriz de tudo ali colocado. Matriz maleável no processo histórico, porque o país no qual a mãe se instalou na infância após fugir da violência anti-semita na Alemanha, é de onde seus filhos partem (fogem?) em nome de uma vida mais segura e confortável, alguns tendo como endereço a Alemanha. O mundo dá voltas, nos mostra Separações, mesmo que, nessas voltas, algo permaneça de seu passado.

Essa relação entre um eu confessional e em conflito com pessoas próximas, nos pondo nas coisinhas secretas de uma família específica, e um eu posto no mundo porque construído por esse mundo, ao qual retorna em primeira pessoa, como uma consciência de si no mundo, não é uma relação esquemática e equilibrada nesses vai e vens entre dentro (família) e fora (o mundo). Pode-se dizer: o dentro incorpora o fora. É fato. Mas há uns tantos momentos em que as questões partem de dentro e ficam por lá. Momentos de notável coragem, de uma explicitação do poder da enunciação, de sua auto-colocação como alvo de nossos olhares e juízos, de uma possibilidade de uma reação final da mãe: sozinha no quadro, ela o abandona, sai da cena montada por sua filha, ao mesmo tempo em que é parte do esperado retorno dela ao cinema, na qual é a personagem principal da protagonista. No final, uma foto que, se por um lado é conciliadora, por outra emite sinais de que, particularidades de momentos à parte, há processos individuais somados a processos culturais e históricos fortes demais para serem apaziguados em um enquadramento.

Pelo que tem de belo e pelo que tem de rebatível, pelo que tem de ambíguo como resultado e não como proposta, pelo que tem de arriscado e de ambicioso, Separações é um “documentário de abalos”, que nos coloca diante de algo tão familiar (a noção de família de forma ampla), mas também tão do “outro”, sem receios aparentes em sua construção. É o retorno de Andrea Selligman ao cinema, e seu primeiro longa. Bem vinda de volta.

Abril de 2010

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