ensaios
Sedução da Carne: Decadência, História, Realismo e Melodrama em Visconti
por João Luiz Vieira - colaboração para a Cinética

A oportuna revisão de boa parte da obra deste mestre do cinema, nascido em Milão há exatos cem anos e falecido em 1976, que o Festival do Rio nos oferece, nos permite pensar na teia traçada pelos quatro termos que titulam esta brevíssima introdução. Dedico-me a pensar a filmografia viscontiana em torno dessas quatro noções, a partir de um filme-chave: Sedução da carne (Senso), realizado em 1954.

Senso significa, antes de mais nada, uma radical mudança na carreira do diretor. Visto, de certa maneira, como uma “traição” ao neo-realismo, o filme, ao abandonar uma classe pequeno burguesa e pouco privilegiada como a de Ossessione, de 1942, ou mesmo a de Belíssima, de 1951, ou ainda, os pobres pescadores do vilarejo de Aci Treza, na Sicília, de La Terra Trema (1947), e ao focalizar a sua narrativa na aristocracia de Veneza, combina um romance épico-histórico do século XIX com a opulência formal presente na estrutura dramática da ópera romântica, marcando o início de uma tendência dominante no conjunto de filmes do diretor daí em diante — a alternância entre temas contemporâneos e temas de época. Mas, apesar da “ruptura” estética, em quaisquer das opções — como em O leopardo ou, mais tarde, em Os deuses malditos — a preocupação política enquanto traço comum que une quase todos os seus filmes permanece ainda ligada ao neo-realismo.

Ao tratar do período do Risorgimento (a unificação de toda a península italiana), em Senso Visconti comenta indiretamente o período contemporâneo, a Itália dos anos 50, como é de praxe nas complexas relações entre a História e o cinema. Alguns paralelos podem ser tirados entre o pós-guerra e o Risorgimento: a liberação da dominação estrangeira (Áustria/Alemanha), a presença e o envolvimento de partidos e líderes radicais (Garibaldi no passado e o fato contemporâneo de ¾ das prefeituras italianas no pós-guerra serem ocupadas por partidos de esquerda) e, principalmente, a constatação de que os dois períodos são imediatamente sucedidos por uma aliança com o inimigo, quando uma elite acaba substituindo a outra, no que historicamente ficou conhecido como Transformismo. Mais aparente em O leopardo do que em Senso, tal material explicitamente político não parece constituir o óbvio conteúdo central deste último — um caso extremo de paixão entre dois personagens. A natureza e o sentido desse caso amoroso devem ser entendidos, entretanto, como portadores de significados políticos. Mais ou menos como no caso mais recente (e polêmico) de paixão no cinema contemporâneo, o amor entre os dois cowboys de Brokeback Mountain nestes anos pesados da era Bush. Lógico que Visconti teve problemas com a censura italiana, que efetuou diversos cortes no filme.

Em depoimento aos Cahiers du Cinéma (n.93, março de 1959) o diretor afirmou que sua idéia original estava relacionada com o aspecto histórico: “Eu até pensava em chamar o filme de “Custoza”, por causa da batalha onde a Itália obteve uma grande derrota. Mas houve protestos da produtora, a Lux, do ministério, da censura... A batalha, originalmente, tinha uma importância muito maior. Mas a idéia era usar a história como pano de fundo para o drama pessoal da Condessa Serpieri que, em última instância, nada mais era do que uma representante de uma certa classe social. O que me interessava era mesmo a história de uma guerra fracassada, uma guerra travada por uma classe social apenas, e que terminou em fiasco...”

Visconti sabia muito bem o que queria ao focalizar o período do Risorgimento através da paixão arrebatadora entre uma mulher aristocrática e nacionalista, a condessa Livia Serpieri (Alida Valli) e o tenente austríaco Franz Mahler (Farley Granger), durante um episódio fracassado da luta pela liberação, a batalha de Custoza. Por volta de 1866 a unificação da Itália já estava praticamente garantida, à exceção apenas de duas regiões nos arredores de Roma e Veneza, exatamente onde se passa a ação do filme. O diretor escolheu propositadamente a derrota como a melhor forma de se falar sobre a fraqueza de uma nova Itália. Nesse raciocínio, a condessa e o tenente significam bem mais do que meros personagens dotados de psicologias individuais. Os dois acabam sendo emblemáticos de recorrências históricas ao representarem os símbolos de decomposição e decadência de duas classes sociais—a aristocracia italiana (de Veneza), equilibrando sua sobrevivência entre a colaboração com as forças ocupantes e com os fracos grupos de resistência, e a casta militar austríaca, expoente de uma sociedade cujo charme já exibia certa aparência de mofo.

A decadência é construída de forma gradativa, principalmente na figura do tenente austríaco, a princípio charmoso, elegante e culto — citando o poeta alemão Heinrich Heine com pertinência e até aparente emoção — mas que, pouco a pouco, vai caindo na falsidade e na covardia, com o único objetivo de tirar o maior proveito possível daquela guerra aborrecida. O tenente Mahler é um aproveitador, preocupado apenas com o presente imediato. Para ele, o romance com a condessa se define bem em suas próprias palavras, quando os dois se encontram no quarto da casa de verão dos condes e ele afirma que tudo aquilo possui um senso di aventura. Também eloqüente é toda a seqüência do depósito de cereais, onde ele, feliz, deita-se sobre toda aquela riqueza acumulada em forma de grãos, expressão máxima de seu desejo. Para a condessa, a decadência significa principalmente a traição sucessiva ao marido, depois ao primo (ligado aos grupos de resistência), e, por fim, traição ao país e à sua própria dignidade. Em um de seus principais monólogos interiores, quando começa a questionar seus sentimentos e emoções, ela afirma que toda aquela paixão possuía um senso di vergogna.

A importância e destaque de Senso em qualquer retrospectiva Visconti não está apenas em seus personagens, e nem nos comentários político-sociais, e sim na sua construção dramática, em sua estética e domínio da linguagem audiovisual. Ao exibir um controle total dos enquadramentos, do trabalho com as cores — Senso é seu primeiro filme a cores — da movimentação e expressão dos atores, do uso da música, da iluminação e vestuário, o diretor mescla indissoluvelmente o cinema, o teatro e a ópera e aponta os caminhos que, daí para a frente, serão trilhados em seus filmes seguintes.

Senso começa num teatro de ópera, com a câmera virtualmente dentro do palco, como um olhar a partir do ponto-de-vista de um espectador num camarote próximo. Daí para a frente ela localiza-se nos espectadores da platéia, inscrevendo a ópera dentro do filme tanto narrativa quanto esteticamente. Os personagens são freqüentemente emoldurados por cortinas e outros recursos de enquadramento. Visconti explora ao máximo todas as possibilidades do palco e da tela, ora utilizando a ópera para comentar ironicamente o que se passa fora do palco — como nos diálogos de apresentação do tenente à condessa, tendo como contraponto o dueto Manrico-Leonora, na primeira cena do quarto ato de Il Trovatore — ora enquadrando a condessa em seu camarote como se fosse o palco. A moldura será sempre uma referência, assim como a cor da porta do camarote é semelhante ao vermelho da cortina do palco que, por intermédio de um espelho, reflete a cantora no palco, presente no mesmo espaço visual que a condessa no camarote.

Musicalmente, o estilo operístico pontua todo o filme, como na entrada do marido em cena, ao seguir sua mulher pelas ruas de Veneza em busca de indícios de traição. Narrativamente, a ópera também se faz presente com o tema da vingança da condessa, ao final. Tal concepção operística — também presente, com variantes, em Rocco e seus irmãos e O Leopardo — deve ser entendida em seu sentido mais positivo, uma forma indireta de representar a paixão romântica, mantendo, simultaneamente, uma distância dos personagens e articulando-se com a linguagem cinematográfica através do privilégio, por exemplo, de planos gerais sobre os close-ups e da posição “teatral” da câmera. A condessa freqüentemente está de costas para o espectador e, nos planos gerais, a exteriorização de suas emoções é centrada com mais eficácia na coreografia de seu corpo. Visconti também evita, com freqüência, o uso tradicional do campo/contracampo, como, no melhor exemplo, na seqüência final da humilhação da condessa. O acesso ao rosto da atriz Alida Valli também é dificultado pelo vestuário (uso de véus) e pela distância da câmera. As exceções a este padrão concentram-se em momentos de clímax, como no depósito de cereais, ou na viagem final de carruagem. Ainda assim, Visconti alterna planos interiores da carruagem, com planos gerais distanciados, de fora.

Visconti aperfeiçoa esse contraditório distanciamento seja através do uso da narração off em primeira pessoa (distância) ou no uso adequado que faz da música para aumentar o efeito dramático. A escolha da Sinfonia n. 7 de Bruckner é a principal responsável pela ênfase na qualidade emocional que transmite a extensão do sentimento romântico. Ela não é usada como uma música convencional que apenas imita as emoções e sim como uma espécie de comentário prolongado que amplia emoções e sentimentos. Se Visconti escapa do convencional, é porque utiliza música que já possui uma estrutura própria, é sinfônica, não é fragmentada. Trata-se de uma estrutura que é superposta ao filme — como Júlio Bressane geralmente o faz em seus filmes, em chave completamente diferente. Senso antecipa ainda o uso dramático da música relacionada a Veneza e à expressão de sentimentos reprimidos. Em Morte em Veneza, Visconti substituiu Bruckner por Gustav Mahler e a condessa Serpieri, de certa forma, pelo professor Von Aschenbach, tendo como objetos do desejo, e em perfeita simetria, tanto o tenente austríaco, como o jovem Tadzio.

Quanto ao uso da cor, Senso é um filme tão importante em sua época quanto foi o clássico de Jean Renoir, La Carrosse d’Or. Além de R.R. Aldo, Visconti trabalhou com Robert Krasker e, juntos, conseguiram cores que combinavam com a narrativa, suntuosa e quente. São cores e tonalidades que relembram os grandes pintores venezianos como Ticiano e Tintoretto, através, principalmente, dos cinzas e dourados dominantes — nas roupas de Alida Valli, magistralmente desenhadas por Piero Tosi, colaborador de Visconti também em O Leopardo e Morte em Veneza. Há toques de vermelho profundo, como na camisa do cocheiro, e enquadramentos e motivos que relembram a pintura realista italiana de meados do século XIX — os camponeses em cima de grandes carroças de feno, a paisagem da casa de veraneio — além do cuidado com detalhes, como a penteadeira da condessa que exibem a maestria de um diretor para quem o realismo não é só produto de um contexto histórico e sim do controle sobre o conjunto de elementos de linguagem cinematográfica que o fazem nivelar a riqueza com a decadência.

N. do E.: Versão integral de texto publicado no catálogo do Festival do Rio.

 

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