Senhores
do Crime (Eastern Promises), de David Cronenberg (EUA/Canadá, 2007)
por Francis Vogner dos Reis Corpo,
poesia concreta
Não há dúvida que David Cronenberg
ganhou sua fama de autor com seus filmes mais abertamente pessoais, sob o rótulo
mal resolvido de horror-scifi, como Videodrome – A Síndrome do Vídeo,
Gêmeos – Mórbida Semelhança, Crash – Estranhos Prazeres e eXistenZ.
Afinal, filmes tão especiais quanto estes pediam por assinatura – diferente das
suas “extravagâncias de gênero” como Scanners, Rabid e A Mosca.
O corpo humano, como instinto-máquina, era o traço comum que unia todos esses
trabalhos, muitas vezes mal interpretados como um cinema simplesmente do sangue,
da aberração física e do excesso. Quando Cronenberg apareceu com Marcas da
Violência, em 2005, a impressão foi outra: havia ali o cineasta de eXistenZ,
mas que propunha um cinema de maior fruição, mais ligado a um ideário do cinema
de grande público, mas que havia mudado um pouco sua preocupação com o corpo.
Mais importante do que as metamorfoses, disfunções e simbioses do corpo humano,
era examinar o que era possível das ações do corpo revelar do que não vemos do
personagem. Essa
virada de Cronenberg é um pouco semelhante à virada de Almodóvar em Carne Trêmula:
um cineasta que abre mão da estranheza da superfície de seus filmes e personagens
para procurá-la no interior deles e para configurá-la em uma psicologia mais ampla
e incisiva em sua dramaturgia. Pois Senhores do Crime confirma essa nova
fase, mesmo que dessa vez Cronenberg se filie a uma tradição mais longeva do cinema
que é a do filme de gângster, da história da crueldade e do crime. Os mafiosos
em questão são russos, moram em Londres (apesar do filme ter sido filmado no Canadá)
e lavam dinheiro (não em clube de futebol, mas em restaurante de comida russa),
como é típico de mafiosos em terra estrangeira. Viggo Mortensen, excelente, é
o cão de guarda do herdeiro mafioso Vincent Cassel, também extraordinário no papel
do filho mimado do chefão. Eles estão em atrito com outra família mafiosa. É disso
que o filme vai se ocupar. Só que apenas em parte. Como o
diretor não dá ponto sem nó, Senhores do Crime não se bastará apenas por
uma trama policial. O filme na verdade começa com uma garota russa dando à luz
em pé em uma farmácia. Quando o atendente olha para o chão, há sangue por todo
lado. A garota de quatorze anos morre e uma médica interpretada por Naomi Watts
fica com o bebê e pega seu diário para pedir que seu tio russo o traduza. As histórias
se cruzam quando a médica vai pedir ajuda do dono do restaurante de comida russa,
sem saber que esse senhor é o chefe de uma família mafiosa e de alguma maneira
tem um envolvimento passado com a história da dona do diário. O
interessante nesse filme de “trama”, não é o desenvolvimento dela em si, mas o
que ela consegue revelar do cinema do diretor nesse material aparentemente tão
atípico e econômico, no melhor sentido do termo. Como todo filme policial, não
existe crime sem evidência. Em Senhores do Crime não há pistas para Cronenberg,
e como bom materialista a evidência primeira é o próprio corpo, é só nele que
podemos acreditar. Portanto Viggo Mortensen será a evidência, que gera inclusive
a melhor sequência de luta do cinema em muito tempo (em uma sauna); o bebê será
a evidência do crime do chefão – e que o filho dele tentará eliminar; do mesmo
modo que o sangue do velho será objeto de justiça poética (não por acaso Mortensen
diz a certa altura, “colha o sangue dele, é mais poético”). Neste sentido, a bela
fotografia é um esforço de tornar toda imagem a mais concreta possível. Em Senhores
do Crime é o corpo quem entrega e revela a verdade dos personagens: a própria
existência deles é essa verdade inescapável – e, para o cineasta, a única capaz
de se revelar, porque palpável. Cronenberg muda (e diversifica) para continuar
o mesmo cineasta, um dos mais brilhantes de seu tempo. Novembro
de 2007 editoria@revistacinetica.com.br
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