sessão cinética
Sem Teto, Nem Lei (Sans toit ni loi),
de Agnès Varda (França, 1985)

por Juliano Gomes

O fantasma da liberdade

Com Sem Teto Nem Lei, Varda encara o desafio de perguntar o que é ser livre. Curiosamente, para fazer isso cria uma estrutura de absoluto controle em sua mise-en-scène. Não há aqui nenhum sinal de improviso: cada travelling tem seu início e fim marcados. Como acontece com a trajetória da protagonista, o trajeto da câmera também está sempre definido de antemão. Mona está morta. O fim da linha está dado. É deste dado que o filme parte. No fundo do plano há solos áridos, galhos retorcidos, máquinas enferrujadas, portas invariavelmente fechadas e troncos decepados. Todo o caminho de Mona é uma dança da morte. É a morte que vemos agir no rosto, nos trajes, na terra seca e nas mãos calejadas. É sua ação, seu trabalho, que nos é dado a ver nos galhos, nas paredes, nas máquinas e nos corpos.

Entretanto, Mona não é a única morta, mas a única viva. É somente ela quem pode renunciar a tudo, inclusive a si mesma, a sua existência. Sua liberdade é essa: não ter identidade, objetivo ou causa. Não ter nada é a única forma de poder ter tudo, de poder ser tudo, de manter vivas as possibilidades. O que o filme busca é tentar apreender algo dessa força sem nome que emana da protagonista, interpretada por Sandrine Bonnaire. E apreender é solidificar, é dar nome. Varda decide pelas impressões, pelo que fica nos personagens pelos quais Mona passa, por suas narrações. A opacidade da personagem funciona como um espelho desses olhares. Assim, acaba revelando uma espécie de inventário de submissões e prisões pelas quais cada um daqueles personagens optou no seu esforço de solidificação, de se tornar estático, de fundar suas raízes num espaço específico, de conformação a alguma forma de status quo. É o oposto do que acontece com a protagonista, cuja morada é somente o movimento, o tempo em toda sua possibilidade. Mona representa o que é inapreensível.

Varda nos coloca dentro desde jogo onde, a cada segmento, achamos que Mona se apaixonou, se afeiçoou, escolheu uma causa ou uma casa. Mas ela sempre escapa, seja num sorriso fora de hora, ou numa moeda que não vai para o pão mas para a jukebox. A liberdade da protagonista coloca em questão todos os laços, compromissos e objetivos de quem passa por ela. Mona põe qualquer tentativa de imobilização, de retenção, em xeque – seja ela o trabalho de estudar árvores mortas, ou a decisão do ex-hippie de se fixar e “deixar a estrada”, a aceitação das regras pelo seu amigo tunisiano, ou mesmo a vagabundagem aproveitadora de seus últimos companheiros. Ela nunca se insere por completo, nunca se conforma ou ajusta. Seu compromisso é exatamente não ter nenhum. Nem mesmo com a estrada.

Mona é o vazio como potência. O vazio que nós e todos os narradores de Sem Teto Nem Lei preenchemos, a cada novo movimento, com espanto renovado. Não é vítima, vagabunda, hippie ou niilista. Ela representa justamente a falência de todas as narrações que estruturam o filme. Varda coloca estes registros em curto-circuito: seja ele o discurso da lógica, da busca racional pelas causas dos atos de Mona, de começos e fins; todos se deparam com um objeto que impõe seu limite. Mona é seu reverso. Não tem causas, nem objetivos, ela somente está. Presente em cada momento. Seu (não) compromisso é com a possibilidade como forma de existência. A cada cena, é isso que ela exerce, sem ter isso como meta.

Trata-se então de uma espécie de falso filme de desencanto. A política, que em toda a obra de Varda ocupa um lugar de destaque, tem aqui um dos seus ápices mais visíveis. Ela cria uma estrutura de conflito entre os personagens narradores e Mona, colocando justamente duas formas políticas em xeque: a da representação, da equivalência e da lógica, e outra absolutamente anárquica, sem causa, porém não niilista. Esta segunda é uma política do presente, da presença, da insubmissão do corpo, da não sujeição absoluta que prega a liberdade dos corpos em relação às identidades ou a qualquer outro tipo de pertencimento. O que é ser livre? Em Mona, a resposta parece começar a partir do momento em que para ela essa pergunta inexiste. É sê-lo indiferentemente, sem ter que optar por isso, para além desta palavra ou ideia.

Julho de 2010

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