in loco - cobertura dos festivais

Sol Secreto (Milyang), de Lee Chang-dong
(Coréia do Sul, 2007)
por Cléber Eduardo

Sem limites para sofrer - e resistir

Nos primeiros minutos de Sol Secreto, de Lee Chang-dong, as situações nos conduzem a Alice Não Mora Mais Aqui, de Martin Scorsese. Vemos o esforço da viúva Lee Shin- ae (a notável Jeon Do-yeon), com seu filho pequeno, em renovar seu ciclo na cidade-natal do falecido marido, a pequena Milyang. A personagem vive os primeiros 50 minutos em tensão “suave”. É motivo de comentários das mulheres do lugar, procura terra para comprar, dá aulas de piano para crianças e recebe toda atenção do mundo de Jong Chan (Song Kang-ho). Quer apenas zerar e começar de novo, mas, no meio do processo, terá suas feridas escancaradas. Alice Não Mora mais Aqui, como ponto de partida, é mais ou menos isso.

Há também uma mulher na luta pela reciclagem, com seu filho adolescente, e novas dificuldades encontradas pelo caminho. Começa pela chegada de Lee Shin-ae a Milyang, quando, com o carro quebrado na estrada, é socorrida por Jong Chan – ele já todo sorrisos e prestativo, como permanecerá durante todo o filme, sempre filmado, ao mesmo tempo, com transbordante afeto e como piada para atenuar o sofrimento. O carro enguiçado na estrada, menino deitado no asfalto, ela de lá para cá em busca de solução para a continuidade de seu deslocamento, a ajuda feliz de um morador. Tudo ali antecipa o prosseguimento da narrativa.

Estamos nessa primeira metade diante de um percurso de adaptações de uma mulher a seu novo espaço e a reação desse novo espaço a sua presença. Nada de muito hard em matéria de emoções. Interessa mais uma observação da comunidade e da sensibilidade dessa mulher. Na segunda hora, depois de vermos o gosto do pequeno por brincadeiras de esconder, ele realmente some. Seqüestro. Termina morto. Veremos a partir desse episódio os surtos de emoções doloridas de Lee Shin-ae, as estratégias sempre cômicas de Jong Chan para se aproximar dela, as tentativas de resistência via religião e novos desabamentos emocionais da personagem. É a parte que, deixando de lado Alice Não Mora Mais Aqui, Sol Secreto encontra Maborosi, de Kore-eda; e Naomi Kawase, talvez, hoje, a grande artista da perda no cinema. Dos efeitos da perda, na verdade.

Essas mudanças no percurso podem parecer marcadas em excesso como viradas dramáticas, assim como as situações de Jong Chan podem parecer funcionais demais, pois têm uma função para o filme para além da existência do personagem – quase uma aproximação com Hong Sang-soo em seus momentos mais cômicos e suaves, como em A Mulher na Praia. No entanto, há momentos fortes o suficiente em sua delicadeza, que, por conta da maneira de se pensar as cenas e da entrega visceral da atriz Jeon Do-yeon (premiada em Cannes), colocam o filme acima de seu projeto. Efeitos acima da arquitetura de seu planejamento. As vigas são cimentadas.

Lee Shin-ae alinha-se a personagens femininas surradas pelo filme até sangrar diante da tela. Não há limites para jogar sobre ela um peso excessivo, como ela se tivesse sido escolhida para “sofrer a mais”. A intensidade, porém, está na personagem, não no enfoque ou no tom. Não estamos nos registros de Lars Von Trier, no sentido de se torturar as personagens com operações narrativas, para além da tortura da vida para elas. Lee Shin-ae sofre como poucas mulheres do cinema manifestaram sofrimento, com choro, gritos, surtos, com o corpo todo, com sua interioridade, com sua expressão de quem não dorme, os olhos inchados, o rosto crispado pelas perdas. Já o filme aproxima-se desse sofrimento com respeito-sem-pudor. Com intimidade, enfim. A câmera não treme: olha fixamente ou movimenta-se suavemente. Não há hiper-expressividade e estilização na imagem e no som. 

Em dado momento, depois de vermos o filho de Lee Sin-ae, uns tantos minutos antes, fingindo roncar no sofá, ouvimos o mesmo ronco, mas agora é dela, da mãe, que, para se aproximar do filho (resgatar a experiência de sua proximidade), imita o filho fingindo. O fingimento acentua a relação entre o que se vê e o que se é, tratado explicitamente em uma cena cujo diálogo fala de fé. A criança some de brincadeira em um momento, o pastor “quase “ comete adultério, o pai duro com a filha adolescente e aparentemente um poço de virtudes virará seqüestrador e assassino, a protagonista quer perdoar o assassino e descobre ser incapaz disso, a pequena cidade se torna fonte de perda. As aparências todas são enganosas. Ou quase todas, porque o prestativo e sorridente John Chan permanece o mesmo em tempo integral. Ele é o que aparenta ser.

Lee Chang-dong baseia-se em livro de Lee Chu-jung (A História de um Bicho, segundo tradução do original), disposto, segundo suas entrevistas, a enfrentar a relação entre fé e sofrimento, entre a vulnerabilidade e a resistência religiosa, lidando, em última instancia, com a narrativa bíblica do Livro de Jó, mas também com as derivações nos séculos posteriores. Sol Secreto é seu primeiro filme desde que foi ministro da cultura da Coréia do Sul em 2003/2004, portanto, envolvido na efervescente fase de cinema coreano em termos de mercado e de prestígio em festivais. Seu retorno é marcado por esse tom geral de sobrevivência na dificuldade extrema. 

Assim tem sido em seus filmes, mas com dinâmicas distintas. Peppermint Candy lidava com as motivações de um suicídio. Oásis enfocava a relação amorosa de um casal de deficientes mentais. O diretor parece chegado a situações-limite, tanto nas finalizadas com a morte como as encerradas com um raio de luz. Sol Secreto, como sugere o título, adota a corda bamba. Chega a acenar com um desfecho sem luz alguma, quando a personagem corta os pulsos, mas opta por um simbolismo mais solar, em que ela terá de se reciclar com as próprias mãos, olhando-se no espelho (olhando para si mesma), com a ajuda de quem se abre a ela (sem religião, mas com amor). Imagem final: restos de cabelo (do organismo dela) misturados à terra (a terra do marido, a terra agora dela).

Setembro de 2008

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