Santiago,
de João Moreira Salles (Brasil, 2007) por
Eduardo Valente Problemas
(reais ou "inventados"?) do realizador frente ao mundo
Como reflexão acerca de procedimentos de filmagem, Santiago
claramente está instalado a partir de uma falsa questão, que é tratada o tempo
todo pelo filme como um problema autêntico e incontornável: a maneira de filmar
o personagem Santiago em 1992. Quando, no final do filme, João Moreira Salles
localiza na sua forma de enquadrar Santiago em 1992 um distanciamento de origem
“social”, parece não perceber que é esta sua conclusão que mais revela o verdadeiro
mal-estar, algo que se instala na pretensão de que havia um “Santiago puro” a
ser “melhor visto”. Esta problematização idealizada de um outro “Santiago” é,
de fato, o que mais rouba de Santiago a sua individualidade: parece considerá-lo
um títere inofensivo, como se um “mabusiano” Salles o controlasse completamente.
Assim, por um lado, a obediência cega de Santiago em alguns momentos; e, por outro,
seu desejo de se “colocar em cena” quase como um ator, tem negado seu potencial
como fonte de revelações extremamente pertinentes sobre este mesmo “personagem”.
Por isso é que a edição que Salles faz quinze anos depois é muito mais
“mabusiana” que a filmagem de então – porque agora sim, morto, Santiago realmente
nada tem a adicionar ao filme que é feito e que leva o seu nome. O objeto, em
1992, subjetivava-se através dos comandos do “mestre Joãozinho” – e, se pensamos
que todo documentário é nada mais do que o retrato do choque entre um realizador
e seu objeto, o filme que se realizava então era absolutamente fiel, senão a um
“verdadeiro Santiago” (uma entidade afinal inatingível a partir do momento em
que tornado objeto de uma filmagem), a um verdadeiro encontro entre João Moreira
Salles e Santiago, em 1992. De fato, tudo o mais que há
de forte no filme já estava lá, no material de 1992: por um lado, a relação de
Santiago com a idéia de morte, de decadência, de finitude; por outro, sua relação
com a “nobreza”. O denso filme que explorasse este tema a partir de um personagem
tão fascinante (e, de novo, todo seu fascínio já estava ali, na filmagem de 1992)
até surge aqui e ali, especialmente quando se reflete na própria vida de Salles
(membro da nossa “nobreza”; cercado pela morte de pai, mãe e da própria casa que
é personagem do filme). No entanto, este filme é deixado de lado pela obsessão
com sua própria linguagem, com o tom sempre auto-importante da sua reflexão sobre
o filme que deveria ou não ser feito. Santiago, o filme, é muito melhor
quando deixa Santiago falar, quando, simplesmente, reproduz as imagens de 1992.
Quando começa a ir e voltar nos retakes, e a abandonar de lado a fala de
Santiago em troca da sua própria, o filme parece um mágico que tenta nos distrair
do principal movendo muito as mãos. De novo, portanto, temos
Santiago, o homem e suas particularidades, sendo abandonados por um olhar que
não consegue, ainda, enxergá-lo – por mais que monte um discurso que parece indicar
o contrário. Assim, este filme de 2007 é, acima de tudo, uma exposição do mal-estar
de classe de Salles consigo mesmo, e praticamente prescinde de Santiago para existir.
Santiago, agora sim, está transformado num “boneco” da má consciência do diretor,
e o que parece pretender ser uma reflexão sobre procedimentos documentais, acaba
sendo muito mais uma sessão de psicanálise pública. Claro que, como sessão de
psicanálise, revela muito de seu “autor”, e daí flui seu maior interesse. Se,
sobre Entreatos, Ruy Gardnier disse ser um bom filme com o nome errado
(segundo ele deveria se chamar simplesmente Atos, já que não havia nada
de “tempo morto” no que se mostrava), podemos dizer que Santiago é um filme
curioso, mas que, para ser fiel a seu verdadeiro tema, deveria se chamar João
Moreira Salles, um documentarista da classe alta – e aqui não se deseja fazer
nenhuma piada, apenas constatar o que está na tela. editoria@revistacinetica.com.br
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