Santiago,
de João Moreira Salles (Brasil, 2007) por
Cléber Eduardo Subjetividade
mediada: entre a classe social e a família universal Nos
primeiros planos de Santiago, de João Moreira Salles, o quadro enquadra
outro quadro, no caso fotografias, com elementos bem dispostos no espaço, composições
de equilíbrio na melancolia, das quais “o olho do filme”, e conseqüentemente do
espectador, aproxima-se com um suave zoom in. É dessa maneira mediada,
por meio de uma imagem de um espaço (e não do espaço), que nos instalamos em Santiago.
Mais especificamente, em cômodos da mansão dos Moreira Salles, a casa de infância
de João Moreira. Outras mediações são propostas pelo diretor.
A primeira é a de usar um filme sobre as lembranças de um ex-mordomo de seus pais,
Santiago, para abrir as portas de sua casa e de seu passado. A segunda é apenas
aparentemente mais direta, a memória pessoal, mas, na prática, cria filtros pela
extrema racionalização dos afetos. A terceira estabelece uma distância entre nós,
o diretor e o teor autobiográfico das palavras – que, apesar de narradas em primeira
pessoa, são terceirizadas ao se usar como narrador a dicção formal e fúnebre de
um irmão (Fernando). Vemos pela soma dessas mediações e filtros algo da vida do
“poder” e da “elite”. Estamos em um processo de subjetivação
do lado de cima da pirâmide social, algo raro em si mesmo no cinema brasileiro,
mas aqui nunca elaborada de maneira direta em seu discurso audiovisual. João Moreira
sempre emprega o quadro dentro do quadro para emitir seu “recado”, incluindo ai
a utilização das imagens de Roda da Fortuna, de Vincent Minneli, com Fred
Astaire, e de Viagem a Tóquio, de Yazujiro Ozu. O discurso é direto, em
primeira pessoa, mas na verdade é indireto, em terceira pessoa (imagens de outros
filmes, a voz do irmão, as lembranças da mansão por Santiago). O
quadro dentro do quadro, o reenquadramento do quadro já existente e sua reutilização
em outro contexto, é o motivo de Santiago. O filme nasce a partir do fracasso
de um outro filme abandonado 13 anos antes, cujas imagens do material bruto, quando
comentadas pelo narrador, têm seus contextos de filmagem e suas opções estéticas
analisados retroativamente. Lá pelo final, quando fala da opção pelos enquadramentos
mais abertos, distantes do entrevistado, sem sequer um close up, João Moreira,
por meio da voz do irmão, constata o x da questão. A distância entre câmera e
personagem, em última instância, expressa a distância de classe, entre o filho
do ex-patrão e o ex-empregado do pai, um vendo o outro dentro de uma lógica de
relação de poder. Não seria essa mesma relação a estabelecida
entre documentaristas e documentados, com esses últimos tentando cumprir uma tarefa
para aqueles primeiros? No desmascaramento do material bruto do filme nunca finalizado,
um outro ordena e outro obedece. Um sabe o que “precisa” ouvir (para seu filme),
o outro se esforça para atender. Porém, as coisas são, a rigor, mais complexas.
Porque a singularidade de Santiago, assim como seu potencial de exotismo (potencial
sempre explorado nas perguntas e induções de João Moreira nas intervenções com
a voz no extracampo da imagem), carrega um deslumbramento de classe. O ex-mordomo,
filmado em uma cozinha pequena, com sinais explícitos de decadência, com saudade
dos tempos de glamour (como mordomo), tem um hobby-obsessão: escrever resumos
biográficos sobre a aristocracia de vários lugares e tempos históricos. É um historiador/comentador
das elites de qualquer período. Parece claro que, diante dessa atitude do ex-serviçal,
o diretor o veja, acima de tudo, como uma aberração social – e procure valorizar
isso nele Ao colocar às claras sua condição social e sua
condição de documentarista, ambas instâncias de poder, João Moreira faz um mea
culpa social e cinematográfico, assumindo o erro de seu processo de aproximação
com o personagem, carregado de autoritarismo em sua manipulação/intervenção. No
entanto, isso é passado, 13 anos atrás. E constatar o deslize é uma forma de constatar
uma evolução, nos insinuando que, ao reconhecer o erro, afirma-se um acerto em
seu lugar. Santiago não esconde o orgulho de constatar uma (auto)transformação
entre passado e presente. “Eu era assim, não sou mais”, parece-nos dizer. E
o que mudou? Em sua nova fase, posterior ao filme abandonado, João Moreira, digamos
assim, anula sua origem social, seja na postura durante a realização, seja na
forma de olhar? A impregnação de classe, caso a resposta seja afirmativa, é algo
do que nos livramos. Pode-se aprender a olhar a vida pelos olhos dos outros e
não apenas olhar os outros com os olhos de nossas vidas. Acima de tudo, João Moreira,
ao fim de seu mea culpa, parece concluir: não sabia ouvir e aprendi a escutar. Há
uma outra questão a ser considerada. Se o diretor nos ensina a desconfiar da autenticidade
das imagens do material bruto a nós exposto, levantando a possibilidade dele ter
sido arrumado esteticamente e de ter sido provocado em nome do rendimento do filme,
esse cultivo da desconfiança carrega consigo um certo idealismo do “objeto puro”,
que não sofre maiores intervenções do documentarista. E ai nos deparamos com uma
ambigüidade de postura. Santiago assume o documentário como representação
ou combate a representação no documentário? Prega como conseqüência uma busca
da verdade tal qual é ou arquiva qualquer possibilidade de fé cega no efeito de
verdade? A verdade mais autêntica de Santiago, porém,
para além de todas as suas mediações, confissões e empenhos em nos vender a visão
certa de uma prática errada, está em uma frase ao final, inegavelmente uma frase
de luto, que nos diz que a vida é decepcionante, seja qual vida for, e pouco coisa
nela faz sentido. Somente nesse momento fica mais claro que, apesar das mudanças
proporcionadas pelo tempo significarem evolução para o diretor (e do diretor),
elas também significam perda e estranhamento. A mãe havia morrido quando ele filmou
o mordomo. O mordomo morreu pouco tempo depois da filmagem. Depois dele, o pai.
A morte é um sinal muito forte em Santiago, assim como a menção aos irmãos,
à infância e à casa-núcleo-útero com seu significado de proteção. Por meio de
um aparente dispositivo estético, portanto, João Moreira Salles nos dá o sentimento
de reconstituição da família. E não nos interessa, nesse sentido, a classe dessa
família. editoria@revistacinetica.com.br
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