Saneamento Básico - O Filme,
de Jorge Furtado (Brasil, 2007)
por Lila Foster

Engrenagem que respira

O cinema de Jorge Furtado talvez possa ser chamado de um cinema de engrenagem. Essa definição um bocado técnica se desdobra de forma múltipla ao longo de seus filmes porque a engrenagem pode ser algo simples, mas só aparentemente. Seus curtas, como Ilha das Flores e O Dia em que Dorival Encarou a Guarda talvez sejam mais explícitos neste aspecto. Eles mostram, através de um movimento aparentemente lógico, a maneira ilógica como o homem compõe uma engrenagem de produção ou de repressão – nos dois casos, perversas. O jogo com a narrativa, a primazia do roteiro, a decupagem exata, os desdobramentos lógicos das ações dos personagens, tudo isso é muito marcante na sua produção. Basta lembrarmos da longa introdução de O Homem que Copiava, onde o personagem narra sua vida em off: as mãos agitadas trabalhando na fotocopiadora, as pequenas narrativas construídas sobre as pessoas que passam pela loja. Neste filme, a luta do personagem será exatamente a de tentar se livrar da engrenagem do trabalho que o subjuga e para isso ele terá que entender o seu funcionamento para depois conseguir burlar o sistema. O plano bem sucedido o leva para um lugar mais alto e confortável na escala social, mas a estrutura permanecerá intacta.

Saneamento Básico – O Filme, menos ácido e muito mais alegre, é também um filme sobre uma luta. Marina, moradora de Linha Cristal, se reúne à comunidade para exigir da prefeitura a construção de uma fossa, pois a poluição do rio tem causado danos à saúde pública local. Tentando atuar junto à engrenagem, Marina e seu marido Joaquim visitam a prefeitura munidos de um documento com orçamento e detalhes para a construção da obra. A secretária da prefeitura educadamente lhes diz que no orçamento não existe mais verba disponível para saneamento básico, somente para a realização de um vídeo no valor de 10 mil reais. É ela mesmo que propõe que esta verba seja utilizada para a construção da fossa contanto que um vídeo seja produzido. Começa a partir daí a verdadeira luta de Marina: dirigir um filme de ficção e cumprir os trâmites burocráticos do projeto sem ter a mínima idéia de como realizar nenhuma das duas funções.

E eis que mais uma vez estamos diante das engrenagens: de um lado os caminhos da liberação de verbas federais e de outro o funcionamento do fazer cinematográfico. O importante é que a máquina inevitavelmente estará lá e o mérito dos filmes do Furtado é exatamente o de operar artisticamente dentro desta máquina sem transformá-la em tema direto. Porque Saneamento Básico trata sim da do estado atual da produção nacional, as políticas públicas de democratização da cultura, a voga da “alfabetização” audiovisual e todo investimento financeiro que decorre desta campanha. Mas tratar disso diretamente talvez não seja tão interessante quanto agir cinematograficamente sobre isso. Não é à toa, portanto, que a prática do cinema vá sendo descoberta com a produção da ficção científica

O envolvimento gradual da equipe agrupada em torno de Marina (composta pelo marido cenotécnico, a irmã-atriz Silene e o cunhado-câmera Fabrício, e posteriormente, o diretor interpretado por Lázaro Ramos) com o projeto e com o código é, de alguma forma, a brincadeira proposta por Furtado. A dúvida sobre o termo ficção, a lógica de um roteiro, o conceito de montagem; essas coisas simples, porém complicadas, são as portas de entrada do humor que permeia todo o filme. O espectador também entra na dança quando a direção e a montagem jogam com o código: na conversa entre Marina e Joaquim sobre o que é uma subjetiva, a câmera atua de forma didática e ao mesmo tempo diegética, mostrando uma subjetiva de Marina ao mesmo tempo em que ela exemplifica o que seja tal recurso para o marido.

 O filme ainda traz outra marca de Furtado que é a riqueza dos diálogos e cenas, principalmente no que eles trazem de mais corriqueiro, como a discussão de um casal sobre a micose ou os dois tomando remédio juntos. Na mesma proporção, o diretor insere o erudito inusitado como na cena de Silene recitando um poema sobre o cabelo. Tudo se transforma numa brincadeira autoral e comunicativa. Este mesmo clima de brincadeira também se reflete no ótimo entrosamento dos atores e muito do humor só consegue ser alcançado por conta disso – o que nos faz lembrar que Saneamento Básico é mais uma produção da Casa de Cinema, grupo unido há 20 anos e que não teve que sair de Porto Alegre (o que também vira brincadeira no filme) para produzir seus curtas e longas-metragens.

Filmado em casa e com gente de casa, talvez este seja o filme mais engraçado de Jorge Furtado, além de ser o que mais respira, pois não deixa as engrenagens se sobreporem aos personagens – e, principalmente, à decupagem. Mas, elas estão lá, sempre. Depois de finalizado O Monstro do Fosso, vivida a emoção da realização de um filme, formados novos artistas, a fossa continua em aberto, sem dinheiro para a sua finalização. Qualquer tentativa de diagnóstico, no entanto, passa longe do espectador: a brincadeira e o humor falam mais alto.

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