ensaios
Sagrada perversão
Sergio Leone e seu punhado de dólares
por Fábio Andrade

Há uma história razoavelmente famosa a respeito da primeira exibição de Por Um Punhado de Dólares na televisão norte-americana. Quando o filme foi selecionado para o horário nobre do ABC Sunday Night Movie, a rede se viu diante de um problema de difícil solução: como exibir a história de um sujeito que chega a uma cidade, engana a todos, promove uma matança generalizada, se enriquece com isso e segue seu rumo, sem culpa ou motivação mais profunda? Por conta disso, um jovem Monte Hellman foi contratado pela ABC para filmar um prólogo, no qual a personagem de Clint Eastwood (interpretada por um dublê com o rosto coberto pelo chapéu) era intimada por um sujeito de poder (um xerife, general ou político – não fica claro – interpretado por Harry Dean Stanton) a “limpar” a vila de San Miguel em troca do perdão pelos crimes que cometeu no passado. Exibido uma única vez, o prólogo – incluído na edição norte-americana do DVD do filme e disponível no YouTube – trazia uma motivação mais palatável, acreditavam os executivos da ABC, para o caos que reinaria por mais de uma hora e meia a partir daquele momento. Mas o caos é naturalmente irreversível.

Essa anedota é expressiva, com tudo que ela tem de patético, pois antecipa um incômodo fundador à seminal obra-prima de Sergio Leone. Pois, como característica essencial de uma obra-prima, é claro que esse incômodo se espalha por cada fio que compõe sua tessitura, não estando limitado a uma simples escolha de roteiro ou a uma mera dicotomia entre o bem e o mal – logo, não camuflável por um remendo grosseiro. Por um Punhado de Dólares é um filme incontornável para a compreensão do cinema moderno justamente por seu caráter absolutamente perversor: se na arte clássica há sempre a intenção de restituir às coisas do mundo um sentido que lhes é original – como na epígrafe de Platão – em Por um Punhado de Dólares tudo chega até o espectador com a polaridade invertida. Mais do que a prática de atos sem justificativas, o filme de Leone se nutre do pecado de chamar algo pelo seu oposto – o bem e o mal; o alto e o baixo; o longe e o perto... tanto faz – de não só embaralhar os sentidos do mundo, mas até mesmo invertê-los.  

Há um lugar-comum não de todo injustificado que coloca Leone como o grande maneirista do western – algo que a homenagem a John Ford com a aparição forçada das rochas do Monument Valley em meio ao deserto espanhol em Era Uma Vez no Oeste serve como justo atestado. Leone, de fato, é apaixonado e assombrado pelo western de Hollywood, mas essa proximidade é mais definitiva no universo do que nas opções de direção – e, consequentemente, na manifestação de suas preocupações artísticas.Quando se vê Por um Punhado de Dólares no cinema, a magnitude daquelas figuras rigidamente distribuídas em Techniscope não nos leva a John Ford ou Howard Hawks, mas sim à mise en scène do sagrado fundada provavelmente por Dreyer – com sua cuidadosa distribuição de rostos à Rembrandt em Dias de Ira ou Ordet – e retomada por Tarkovski, que traria ao mundo composições muito parecidas em Andrei Rublev (foto) dois anos depois de Por um Punhado de Dólares ser lançado. Nos três diretores, há em comum uma colocação tão harmoniosa quanto duramente artificial dos elementos em cena, transformando cada ser em uma pequena engrenagem que movimenta e constitui o quadro-cosmos.

O grande fator de modernidade de Leone está justamente em buscar esse índice de construção de iconografia religiosa, no cinema e fora dele, para sacralizar o que há de mais banal, muitas vezes santificando o Mal. Em Por um Punhado de Dólares, não há um personagem justo, tomado pelo Bem – com exceção de Marisol (Marianne Koch) e sua família, cujo filho muito expressivamente se chama Jesus, expulsos do filme por uma piedade de fé do matador interpretado por Clint que por um momento o aproxima mais do monge de Rashomon do que do mercenário de Yojimbo, inspiração confessa de Por um Punhado de Dólares – e todo o funcionamento da vila de San Miguel depende da inversão absoluta dos valores, de dar voz aos maus e de expulsar os bons, de trazer os bandidos para o papel principal, uma vez que não há mais heróis. Mas, principalmente, de filmar os bandidos como heróis, como Leone depois faria de forma inversa com a persona de Henry Fonda em Era uma Vez no Oeste. Por um Punhado de Dólares é um filme magnificamente perverso justamente por filmar o inferno absoluto como se ele fosse o céu. E, ainda por cima, nos fazer acreditar nisso.

Sergio Leone reconhece o maior poder e a maior responsabilidade do cinema (e, com reverência, desrespeita ambas): é a ferramenta capaz de prolongar a vida, de manter vivo um movimento (e um corpo) morto; porém, essa impressão de vida tem um custo alto, pois transforma o que é vivo – o mundo – em algo morto, gélido, fantasmático. Por um Punhado de Dólares é um grande documento sobre o cinema – arte que já nasce na modernidade e que deriva diretamente de seu espírito, logo, filha dessa desconfiança – muito pela cuidadosa, principalmente quando claramente instintiva, inversão que realiza entre vida e morte. Toda a encenação do filme e dentro do filme (a personagem de Clint dirige um espetáculo farsesco onde palco e platéia são a própria vila de San Miguel) se baseia na mais baixa perversão anunciada pelos escritos de Bazin: filmar os vivos feito mortos, e os mortos feito vivos. É justamente “ressuscitando” dois soldados já fuzilados que Clint instaura o inferno em uma cidade onde os vivos são vistos apenas como potenciais inquilinos de caixões – esconderijo que salva Clint no momento decisivo, e de onde ele espiará o apocalipse final. Mais tarde, o golpe se repetirá, invertendo a máxima marxista de que a história se repete primeiro como tragédia, depois como farsa: mesmo após Ramon (Gian Maria Volonté) disparar uma sequência de tiros em seu peito, o anti-herói de Clint se levanta novamente e novamente, desafiando a própria mortalidade.

Se essa inversão generalizada promovida pelo filme é fruto inegável do cinema moderno, sua maior perversão – e sua maior perfeição – é encampá-la classicamente, justificando o mundo pela impressão de integridade em seu registro. Se em Ford temos uma espécie de “documentário” do mundo encenado, onde todo o mundo está na tela, em Leone há uma transparência na documentação da própria encenação. Leone filma um mundo, mas este mundo é o cinema. Por um Punhado de Dólares é um filme tão mais agressivo por o diretor recorrer às mesmas táticas que a personagem de Clint Eastwood põe em ação para sobreviver no inferno. Há uma cumplicidade nesse posicionamento em relação ao mundo que é fascinantemente demoníaca. E enquanto os mortos seguem vivos, tiro após tiro, os rostos dos vivos são congelados nos grandessíssimos primeiros planos de Leone – reagindo a coisa nenhuma, petrificados como um desafio irônico a Lumière – como seus corpos são embalsamados na suspensão do pré-duelo. Por um Punhado de Dólares: um filme de ação congelada; um panorama em 2.35:1 de exuberantes paisagens desérticas.

Resta, portanto, observar o decoro e reverência de uma missa sagrada ao banal – e nada mais demoníaco do que o banal –, um ritual que não serve a fim algum que não ao próprio ritual – a finalidade sem fim que se convencionou chamar de “estética”. Que isso surja no coração do mais vagabundo cinema italiano (a Itália, de todos os lugares!) é apenas a coroa de espinhos da ironia. “In my childhood, America was like a religion”, diz Sergio Leone no livro de Christopher Frayling que leva seu nome. Em Por um Punhado de Dólares, Sergio Leone cria um altar para caubóis assassinos, fantasmas bruxuleantes tirados de velhas lembranças projetadas em preto e branco, em uma celebração religiosa à perversidade do próprio cinema, onde a vida não quer dizer nada, pois tudo não passa de um filme. O cinema é o lugar onde os filhos de deuses matam feito homens imperfeitos, mas nem por isso traem sua divindade. Há uma beleza perversa na maneira como a câmera derruba cabeça após cabeça, em close, separadas de seus corpos em uma coreografia estática de imitação de morte. E o faz apenas pela beleza. E por um punhado de dólares.

Março de 2012

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