in loco - cobertura dos festivais
Sad Vacation (idem), de Shinji Aoyama (Japão, 2007) por
Fábio Andrade Mundo-mãe
Assim
como Eureka (o filme de 2000 que tornou Shinji
Aoyama conhecido no mundo, sendo inclusive seu único filme lançado comercialmente
no Brasil), Sad Vacation também tem um título musical: no
filme de 2000, inspirado em música de Jim O Rourke; agora, em uma canção de Johnny
Thunders (dos New York Dolls) escrita à memória de Sid Vicious (Sex Pistols).
A semelhança não é fruto de acaso: quando, logo nos primeiros minutos de Sad
Vacation, uma série de breves planos gerais em estilo cartão-postal
é montada em cortes secos, vemos entre as paisagens uma escada no alto de
uma montanha, que parece levar a uma espécie de templo ou monumento
de pedra. A aparição é rápida, mas deixa o espectador que lembre daquele
filme de 2000 com uma dúvida: não seria aquele o lugar onde Kozue exorcitara
seu passado jogando pedras ao precipício, no final de
Eureka? De fato, Sad Vacation é uma continuação
não só do filme de 2000, mas o fechamento de uma trilogia iniciada por Helpless
(que, com suas inúmeras referências a Kurt Cobain, provavelmente teve seu
título tirado da canção homônima de seu ídolo, Neil Young), primeiro longa-metragem
para cinema de Shinji Aoyama. Além de termos o retorno de duas personagens de
Eureka (Kozue e Akihiko – respectivamente, Aoi Miyazaki e Yoichiro Saito),
temos ainda a volta de Kenji (Asano Tadanobu) e Yuri (Kaori Tsuji), personagens
de Helpless, em um encontro que vem com ares de purgação. Se há algo comum
a Helpless e Eureka é justamente o sentimento de desconexão (em
ambos os filmes, acentuados pela presença em um ato de violência) com o mundo
ao seu redor que perpassa todos os filmes de Shinji Aoyama. Mais do que uma outra
nota fúnebre na longa canção de Aoyama, Sad Vacation é tanto uma continuidade
quanto uma ruptura. Porque, apesar de ser uma sequência, o filme surge como uma
oposição direta e diametral a seus dois trabalhos referentes. Em
primeiro lugar, pelo discurso: enquanto as personagens anteriores eram marcadas
pelo abandono do mundo representado em seus pais, Sad Vacation é movido
pelo desejo de reatar laços. No caso de Kenji, a disposição de reacolhimento por
parte de sua mãe biológica ecoa em um vazio existencial anterior que ele não consegue
administrar; há, em sua perda, um movimento incessante de vingança. Kenji parece
uma resposta à personagem solitária e desconectada que se tornaria tão comum em
filmes da virada da década de 1970 para 1980 (Profissão Repórter, de Antonioni;
O Último Tango em Paris, de Bernardo Bertolucci; Badlands, de Terrence
Malick; O Dinheiro, de Robert Bresson, etc) e que, embora compartilhe do
mesmo isolamento, responde ao mundo com uma explosão de violência. Seu novo relacionamento
com a mãe será marcado pela inversão de papéis: se antes ela o fizera sofrer ao
abandoná-lo, agora é ele quem tenta, sem sucesso, machucá-la a qualquer custo.
Essa fonte inesgotável de perdão materno (sentimento um
tanto religioso) se transforma na grande separação geracional de Sad Vacation:
algo se perdeu com a ruptura, e o desejo de recuperá-lo é insuficiente, mesmo
quando infinito. Não há plano mais expressivo, nesse sentido, do que uma conversa
que Kenji tem com a mãe, compostos em quadro cortado ao meio pelos batentes de
uma janela. Por mais transparente que pareça a relação entre eles, há, ainda assim,
uma barreira intransponível que determina aquela dinâmica. Além disso, é o que
os separa que Aoyama estabelecerá como símbolo da maternidade do mundo: as janelas,
espaço que conecta o público ao privado, o interno ao externo, o sujeito à vida
exterior. Essa
carência materna marca toda a construção de personagens e relações em Sad Vacation.
No caso de Kenji, isso é evidenciado tanto pela adoção de um garotinho chinês
que seria vendido como escravo no Japão, como pelo animal que ele leva para o
garoto: um coelho – outro ícone religioso (e grego, o que acentuaria a predileção
de Aoyama pela tragédia) que pontua o universo de Sad Vacation, como símbolo
tanto de fertilidade (assim como a casa-mãe onde se concentra o filme, o mundo
seria capaz de reassimilar todo e qualquer agregado) como de renascimento (Páscoa).
Se Eureka e Helpless eram filmes sobre a necessidade de se colocar
em trânsito (o ônibus em um, a motocicleta em outro), Sad Vacation é sobre
a possibilidade de se ancorar; de fazer de um espaço fixo, um lar. Em todo seu
impulso destrutivo, é nesses momentos que Kenji parece, também, desejar um futuro
vivo para si: a idéia de paternidade como o desejo de que a criança tenha um futuro
melhor do que o seu passado. Mais ilustrativa dessa ampla
ambiguidade é a ruptura visual que toma o filme de Aoyama: enquanto Helpless
e, principalmente, Eureka eram grandes jornadas de clássica transparência
dramatúrgica, Sad Vacation é arejado pela desconcertante auto-consciência
da montagem, e por uma entrega absoluta à flexibilidade dos registros, por vezes
misturando diversos possíveis filmes em uma obra só (do que o magnífico final
seria o maior exemplo – em um salto de diegese que o filme parecia não ser capaz
de sustentar). No caso da montagem, um recurso é revelador: em algumas sequências,
o plano final deixa antever, antes de seu fim, o início do primeiro plano da sequência
seguinte. Com esse simples movimento à Resnais, Aoyama faz um comentário tanto
estético (a evidência um tanto banal, mais mostrada com muita eficiência, da mútua
influência entre dois planos montados), quanto narrativo (a relação retroativa
entre as ações e reações flagradas pelo filme, tanto internamente quanto em relação
à sua filmografia passada, em um raciocínio que – embora faça uso de uma convenção
do cinema moderno – é, em si, bastante clássico), ao mesmo tempo que distribui
suas personagens em um desenrolar narrativo controlado por uma força externa,
um destino do qual elas não podem escapar (outra idéia grega). Seria,
então, Sad Vacation o cume de destruição alcançado por Aoyama em sua niilista
jornada? Concordar seria olhar apenas para parte do discurso, pois além de Kenji
– seu grande Ícaro caído – há, no filme, o retorno da personagem-chave de Aoyama:
Kozue. Lembramos de sua silenciosa jornada das 3 horas e meia de Eureka,
mas, sobretudo, de como o filme de 2000 começava e terminava com sua voz: em um
primeiro momento, profética; ao final, redentora. É ela quem joga uma pedra para
cada uma das outras vítimas do ato de violência que marcara sua vida, falando
seus nomes, quebrando sua mudez em um exorcismo do passado, e em um mergulho virgem
no futuro. Pois
também é ela quem, em Sad Vacation, encontra uma família – e não é gratuita
que não seja sua família biológica, pois o acolhimento materno é, sobretudo, uma
questão afetiva. Sad Vacation termina com imagem semelhante de redenção:
Yuri, garota partida por uma progressão de traumas, sopra uma enorme bolha de
sabão que flutua pelo céu, até estourar sobre a cabeça de todas as personagens
restantes. Uma bolha gigante que estoura sobre todos, indiscriminadamente, capaz
de flutuar em seu próprio movimento, englobando todas as pessoas em uma mesma
balada. Em filme tão surpreendente dentro de sua carreira, Shiji Aoyama parece
afirmar que, para quem a vida sempre pôs em trânsito, talvez não exista atitude
politicamente mais vigorosa do que decidir parar, por um tempo, para viver em
um outro lugar. Outubro de 2008 editoria@revistacinetica.com.br
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