admirável mundo novo - especial retrospectiva 2006
Saddam e Cicarelli: nossas imagens
por André Brasil e Cezar Migliorin

O enforcamento de Saddam Hussein e a cena de sexo na praia de Daniela Cicarelli: estas são imagens-acontecimento de 2006, que devem ser pensadas como parte de um dispositivo complexo de produção e circulação. Sua aparição na internet – mais do que uma mídia, uma espécie de laboratório estético, ético e político – é um dos pontos de uma rede intrincada que liga mídias, tecnologias, empresas, instituições governamentais, estratégias publicitárias e militares. Dois vídeos “amadores”, imagens precárias, “desautorizadas”. Dois acontecimentos que apontam para uma nova ética da imagem.

O enforcamento de Saddam é filmado com um celular. São imagens sonoras: ouvimos insultos, súplicas, e, ao fim, a Chahada – testemunho de fé do muçulmano – entoada por Saddam segundos antes de cair no cadafalso. A tela escurece.  Os gritos continuam até a imagem final: Saddam morto. A cena de Cicarelli com o namorado na praia é mais prosaica. Depois de beijos e carícias na areia, o casal vai para a água e é filmado em movimentos que indicam uma relação sexual. A câmera sempre distante. Nos encontramos em uma encruzilhada de discursos e de sujeitos que, paradoxalmente, tem como principal traço o anonimato. Terra de todos e de ninguém, imagens desautorizadas: captadas sem autorização, não possuem autor, não responsabilizam ninguém, funcionam autonomamente.

Vejamos mais de perto esse anonimato. Que modo de produção e de circulação é esse? Que espécie de autoria, ou melhor, que modo de subjetivação (e de dessubjetivação) se efetua? Qual o jogo de controle e de descontrole? Enfim, que ética é possível ali?

Guardadas as várias diferenças entre os dois vídeos, eles podem ser pensados a partir de um ponto de partida comum: em ambos, as imagens se constituem por uma precariedade de meios e por uma ausência de escritura que as legitimariam como imagens não-mediadas. Ou seja, operam como dados brutos que nos permitiriam acessar diretamente o fato ocorrido, o “real”. Diferentemente das imagens em direto da TV, que são emitidas a partir de um ponto, espacial e discursivo, elas surgem de lugar nenhum, como se produzidas por ninguém. Imagens sem autoria, ou ao menos, sem responsável. Elas são produzidas e difundidas por meios através dos quais ninguém pode (ou ninguém precisa) ser nomeado (e responsabilizado) como difusor.

A autonomia dessas imagens se dá pelo modo acentrado e virótico como se proliferam: quanto maior o consumo, mais visíveis e presentes. A tentativa de impedir sua disseminação produz efeitos contrários. A visibilidade das imagens não depende de uma vontade de exibição centralizada, e sim da simples curiosidade em vê-las e das várias formas possíveis para acessá-las. Restringir, censurar, proibir são outros modos de difundir. Sem mediação, sem autor, sem centro difusor.  Diante ainda do anonimato dos produtores e dos espectadores das imagens, entramos em um círculo generalizado de “desautorizações” e de “desresponsabilidades”. A existência das imagens se torna um fato natural, fora do domínio da ética.

Os vídeos de Cicarelli e de Saddam produziram opiniões – não necessariamente embate ético. Afinal, pretensamente, não há mediação de onde possa surgir a pergunta sobre o direito e pertinência das imagens. Elas parecem desgarradas das instituições, dos sujeitos, dos poderes, dos aparelhos de codagem. Impõem um excesso de presença, uma falta de sentido e uma impossibilidade de julgamento. As imagens existem. Ponto. Existem se vistas; desaparecem se não vistas. Todos que fazem parte do dispositivo atuam de forma semelhante. O espectador/usuário inclusive. Produzo, escolho, divulgo, armazeno, acesso, troco, comento, mas não tenho nada a ver com isso.

Novos paparazzi

Avancemos mais devagar com nossa hipótese. Talvez fosse produtivo nos questionar se esses processos significam mesmo uma ausência de autoria e de mediação. O que essas duas imagens-acontecimento portam parece ser menos uma ausência do que uma complexificação da autoria. Em outras palavras, o anonimato intrínseco à criação, reprodução e fruição das imagens não seria a anulação da autoria e dos sujeitos envolvidos, mas antes sua inserção em um jogo de espelhos, jogo de simulações, de refrações, jogo de subjetividades e de estratégias de poder.

Arriscando um pouco mais nessa lógica, poderíamos dizer que, diante da impossibilidade do seu controle absoluto, os vários atores envolvidos na produção das imagens acabam por tentar regular, monitorar, modular a autoria. Tentam, cada qual à sua maneira, com os meios e repertórios de que dispõem, administrar, gerir, optimizar, capitalizar. Importados da linguagem do management e do marketing, esses termos não são gratuitos aqui.

O vídeo de Cicarelli é uma espécie de atualização para o universo da internet dos escândalos provocados pelas lentes indiscretas e inconvenientes dos paparazzi. Mas, trata-se de uma atualização que implica uma complexificação. Produzir a imagem de uma celebridade hoje, mais do que nunca, é ativar um processo de circulação e disseminação incontrolável. A autoria, repetimos, se rarefaz, torna-se distribuída, dilui-se na rede de anônimos, confundindo-se com ela. No limite, o paparazzi somos nós, espectadores, usuários e difusores das imagens.

Em meio à entropia que se produz, cada decisão e cada intervenção dos atores envolvidos só faz aumentar o descontrole. As idas e vindas de Cicarelli, os ditos e não ditos, a proliferação de opiniões, as novas imagens... Até que nos deparamos com a sentença do desembargador Ênio Santarelli Zuliani que, em um gesto jurássico, decide nada menos do que tirar do ar o Youtube no Brasil, o quinto site mais acessado na internet. O que torna tão patética a decisão é a idéia ingênua de que o site pode se constituir como um pólo difusor e como um centro de controle da informação. Algo, sabemos, impossível no domínio da chamada Web 2, no qual predomina a baixa moderação e onde o conteúdo é inserido, em grande medida, pelos usuários.

Essa autoria difusa, rarefeita, instável torna difícil identificar os interesses e as conseqüências por trás de cada ato: seja uma transa na praia, uma execução sumária, uma sentença judicial patética, um click com o mouse.

Acaso roteirizado

No caso da execução de Saddam, especificamente, talvez essas imagens não sejam tão casuais assim. Ali, a precariedade parece garantir sua autenticidade e também reforça seu pretenso anonimato: as imagens foram feitas por «eles». No caso, «eles» participam de um mesmo universo: os que foram mortos por Saddam, os carrascos, os que julgaram o ex-presidente, o próprio Saddam, os traidores de celular em punho. Nós, os ocidentais do mundo democrático (como fez questão de enfatizar o presidente americano), estamos fora da imagem e de sua produção. Ética e esteticamente tudo concerne a eles. Da mesma forma que conhecemos as aberrações de Abu  Ghraib, conhecemos agora a imagem da morte de Saddam.

Todo o poder que construiu o contexto para que esta execução pudesse se dar encontra-se absolutamente alienado da imagem. Em nenhum momento vemos uma marca mínima deste poder. A escritura que nos é mostrada se constitui por imagens quaisquer, fruto do acaso, como se elas pudessem, quem sabe, não ter existido.

Nesse sentido, a internet e o celular exercem papel fundamental. Sabemos da importância dessas imagens na guerra que os Estados Unidos perpetuam no Oriente Médio. Elas funcionam como uma espécie de uma pontuação em uma guerra sem fim, que parece perdida diante da caótica situação deixada no Iraque. Marcam uma evolução, um desdobramento em uma narrativa demasiadamente repetitiva. Na grande mídia e na macro-política, toda situação complexa pode se tornar uma narrativa repetitiva e enfadonha. O múltiplo e complexo deve ser reduzido a uma lógica dicotômica e nada melhor para isso do que a identificação e execução do tirano. As imagens da execução de Saddam são como uma garantia de que o serviço foi feito, de que o mal (eles) está sendo vencido pelo bem (nós).

Se estas imagens são então fundamentais para dar sentido à intervenção americana, elas não deixariam de existir. Não podiam ser deixadas ao acaso. Não podiam depender da presença fortuita de um telefone portátil no momento da execução. Levemos em conta, portanto, a seguinte hipótese: o grande espetáculo da morte de Saddam foi, premeditadamente, filmado com um celular, enviado pela internet e recuperado pela televisão. Uma estratégia de guerra que usa a internet, o celular e a precariedade das imagens para garantir o anonimato. Que administra estrategicamente o anonimato, que se apropria e roteiriza o acaso e a contingência.

Não, não se trata aqui de defender o retorno a alguma teoria da conspiração. Nem de reafirmar qualquer tipo de ressentimento diante das virtualidades tecnológicas. Mas, apenas de sublinhar as novas questões éticas, políticas e estéticas implicadas nos casos de Cicarelli e de Saddam Hussein. Cada qual a sua maneira, eles nos inserem em um circuito de produção e circulação de imagens em que “desautorizar” e “desresponsabilizar” se tornam estratégias para “legitimar”.

Diante da proliferação de mídias e gadgets de todo tipo, diante da proporcional proliferação de imagens própria do capitalismo contemporâneo, entre a policia que insiste em tentar impor uma ordem e o marketing, eficiente em capitalizar a desordem, nos resta a política: a única forma dessas se tornarem efetivamente nossas imagens.

editoria@revistacinetica.com.br


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