in loco - cobertura dos festivais
Sábado Inocente (V Subbotu), de Aleksandr Mindatze (Rússia/Ucrânia/Alemanha, 2011)
por Filipe Furtado

Horror abstrato

A câmera na mão como significante de autenticidade é um dos recursos mais surrados do cinema contemporâneo. Por isso mesmo, é importante destacar o feito deste segundo longa de Alexander Mindadze, que, em parceria com o ótimo fotografo romeno Oleg Mutu, extrai da premissa do filme realista, todo rodado com câmera na mão, algo muito mais forte que uma simples idéia de mimetizar uma experiência autêntica. A principio, Sábado Inocente se apresenta realmente no terreno da reconstrução realista: estamos nas proximidades de Chernobyl, no dia da explosão da usina nuclear local em 1986. Valerij, membro do partido comunista, ouve numa discussão interna a notícia do vazamento nuclear e tenta, junto à namorada, deixar a cidade, sem poder revelar a ninguém mais a notícia que ainda mantida em segredo pelas autoridades. Valerij tenta pegar o último trem do dia e falha, termina arrastado para um casamento de um amigo, se reaproxima de seus antigos companheiros na sua ex-banda que toca no evento, bebe sem parar, tudo isso com plena consciência de que é preciso escapar do local o mais rápido possível, que cada minuto ali representa respirar mais de um ar envenenado.  

O grande achado de Sábado Inocente é reconhecer que sua reconstituição equivale a um filme de terror em que, no lugar de um monstro, é preciso lidar-se com um inimigo abstrato, que se espalha ao redor dos personagens, numa batalha contra seu entorno que Valerij e seus amigos já perderam antes mesmo do filme começar. A câmera de Mutu encontra, no seu movimento, não só o desespero do homem que sabe precisar abandonar o local, mas é incapaz de fazê-lo, como também este sentimento de horror generalizado que altera até o mais simples dos encontros entre amigos propostos pelo filme. Há uma impressão constante de claustrofobia, mesmo em locações externas. Até por isso mesmo a imagem de Sábado Inocente por vezes parece abandonar por completo uma idéia de representação realista e assume mesmo caráter impressionista e abstrato, com seu personagem principal se revelando menos como um corpo a correr e muito mais como uma figura distorcida dentro do campo de imagem que parece se dissolver no seu mundo. Procura-se uma verdade na experiência não pela mímese, mas pelo seu oposto: uma completa dissolução do corpo dentro do plano.

Sábado Inocente não é um filme perfeito, muito porque as tentativas de ancorar o drama de Valerij na história da sua relação com as personagens que encontra pelo caminho é um tanto frágil. Mesmo assim, o filme incorre em muitos acertos. Mindatze é consciente de que nada seria mais desinteressante do que uma representação oficialesca do desastre, e não só busca a porta dos fundos da experiência de um único homem, mas exclui dela a maior parte dos elementos de sobrevivência que a convenção sugere, assim como muito das formas mais óbvias de desdramatizar a ação. O ponto forte de Sábado Inocente é mesmo a forma como a colaboração entre Mindatze, Mutu e o ator Anton Shagin constrói está impressão constante de "concreto abstrato", em que cada elemento de cena existe com grande peso em si mesmo, enquanto também se revela no limite do irrepresentável.

Outubro de 2011

editoria@revistacinetica.com.br


« Volta