in loco - cobertura do É Tudo Verdade
Ruhr, de James Benning (EUA, 2010) por
Fábio Andrade
A natureza da cultura Ruhr
é de tamanha economia estrutural que todo texto crítico sobre o filme pode,
com alguma brevidade, partir de uma descrição plano a plano – algo que Matthew
Flanagan faz com admirável riqueza de detalhes em seu artigo
para o The Auters. Afinal, estamos diante de um longa-metragem de 120 minutos,
que se divide em duas partes iguais: a primeira é composta de 6 planos fixos,
de diferentes durações; a segunda é ocupada por um único e longuíssimo plano,
que sustenta sua fixidez por 60 minutos. Nesta segunda metade, James Benning aproveita
do vídeo (formato que ele adota pela primeira vez para um longa) aquilo que a
película de 16mm não lhe oferecia: a possibilidade de parar diante de uma cena
e filmá-la, sem qualquer interrupção, por uma hora completa. A
suposta monotonia (no sentido literal de “um único tom”) formal de Ruhr
passa, porém, muito longe de um puro exercício contemplativo. James Benning nos
oferece um mundo esburacado, estabelecendo relações formais e tópicas entre os
planos que incitam a participação ativa do espectador para fazer deles mais do
que meras paisagens. Não há crítica justa a Ruhr que não aceite o desafio
de completar o que é mínimo, e de compartilhar sentidos que Benning possibilita
em sua mínima armação de fotografia e montagem. Sem posicionamento, resta apenas
o enfado da descrição. Pois Ruhr é (ou, ao menos, é também) um filme
sobre a própria intervenção do homem na natureza – seja ela uma questão interna
à diegese (o confronto da civilização com seu espaço, dentro de cada plano) ou
externa, que se dá na intervenção do espectador no universo do filme. O processo
que vemos em tela é, em grande medida, o mesmo que estabelecemos com a tela em
si – com os limites do quadro, as impressões de luz, cor e sombra, a duração dos
planos, etc. A paisagem natural (ou o filme, como tal) recebe a intervenção direta
da cultura (ou do espectador). Temos, com isso, um novo mundo possível.
Tudo
isso seria uma projeção de mão única, caso Ruhr não nos desse elementos
suficientes para estabelecer os paralelos que fundamentam essa leitura. Em seu
segundo plano, o filme mostra uma máquina industrial em funcionamento. Cada pequena
parte tem tempo e movimento próprios, mas a harmonia desses desempenhos individuais
cria uma espécie de organismo único, capaz de realizar uma função específica.
Já no quarto plano, James Benning reproduz a mesmíssima composição de quadro em
uma mesquita, onde os homens se ajoelham e se levantam de maneira ritmada, como
as engrenagens em primeiro plano na fábrica. Há, nessa rima, não exatamente uma
contraposição, mas sim uma equivalência visual que determina ambos os rituais
(o industrial e o religioso) como partes de um mesmo empenho cultural. A
natureza, em Ruhr, não funciona como sinônimo do mundo intocado, mas sim
da condição essencial e original das paisagens, originais em sua natureza ou construção.
Isso fica claro na escolha da locação que dá título ao filme (um vale industrial
determinado pelas condições naturais daquele local), e é mais explicitamente trabalhado
no quinto plano do filme, onde um homem retira uma pichação de um monumento de
Richard Serra, mas produz um novo desenho (um desenho sobre o desenho) com o rastro
de limpeza que marca o grafite. Toda intervenção, progressista ou conservadora,
deixa suas marcas, alterando o curso dos eventos – e isso vale tanto para a relação
homem/mundo, quanto a espectador/filme. Essa parece ser a questão central em Ruhr,
uma vez que homem e natureza não são antagonistas, mas sim partes complementares
de uma mesma paisagem. O que está em jogo, em Ruhr, é exatamente esse campo
de influências, onde o homem e a paisagem (natural ou não) aparecem em constante
tensão magnética. Essa tensão surge tanto na relação entre planos (como no binômio
fábrica/mesquita), quanto dentro do próprio plano (os carros e bicicletas que
cortam o primeiro e o sexto planos; o rastro de vento deixado pelo avião que balança
as árvores no terceiro plano). Como diz a citação de Deleuze e Guattari em Anti-Édipo,
que aparece aqui graças a destaque recente de Cezar Migliorin, “já não há nem
homem nem natureza, mas unicamente um processo que os produz um no outro”. Já
não há filme ou espectador, mas filmes possíveis que se completam nos encontros
individuais com cada espectador.
A
divisão do filme em duas partes se faz, aí, essencial. Pois é justamente no sétimo
plano que ambos, cultura e natureza, parecem inverter suas posições. Temos no
quadro uma chaminé que – evocando, em um contraplano histórico possível da mesma
questão, as imagens finais das torres incendiadas do World Trade Center – periodicamente
joga uma enorme quantidade de fumaça no ar. A brancura da fumaça industrial, porém,
evoca a pureza das nuvens. Aos poucos, a fumaça cobre toda a torre, antes de se
dissipar novamente. Nesse ínterim, resta apenas a ilusão das nuvens brancas contra
o céu azul, que anoitece lentamente a cada novo jorro de fumaça. Há, naquela impureza
industrial, a produção de uma nova paisagem, em uma intervenção que encobre o
artifício original (a torre) e produz, com isso, uma nova cena.
Nesse
sentido, é ainda mais expressivo (diria até metalinguístico) que James Benning
tenha usado recursos digitais para simular o anoitecer dentro da duração do plano.
A mudança de luz produzida artificialmente gera novas interações de cores e formas,
à medida em que a fumaça vai deixando de parecer branca e começa a se aproximar
da tonalidade do próprio céu. A intervenção do artifício (o falso anoitecer; a
fumaça da fábrica; a leitura feita do plano) eventualmente se iguala ao fundo,
à superfície concreta (o céu; a natureza; o plano em si) sobre a qual ela se projeta.
O filme enquanto tal se esconde em seus próprios artifícios, para que, com isso,
possa se tornar o filme particular que cada espectador vê.
Abril
de 2010
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