in loco - cobertura dos festivais
Rua Aperana 52, de Julio Bressane (Brasil, 2012)
por Juliano Gomes

Matéria e memória

Num primeiro momento, a parte do relevo que mais se deixa ver em Rua Aperana, 52 é de que se trata de um filme que realoca ou corrige os rumos da mania biográfica que assola nosso cinema, que faz da singularidade uma espécie de valor metafísico, o “tesouro de cada um” que torna tudo especial, que confere aura a um nome próprio, e credibilidade a um rosto. Este cinema que tenta, afinal, erigir seu valor a partir desse dado prévio que nada mais é do que uma condição básica: todos somos diferentes, em ficção ou não. Mas isso não torna nada arte, essa aposta em tal verificação. O antibiografismo de Bressane não se deixa esgotar em mera ferramenta retórica, caso somente suprimisse a instância biográfica, não nos dando nomes, por exemplo, ou confundindo a cronologia. A ousadia aqui é fruto de operações violentamente transparentes (pois estabelecem de cara uma estratégia de significação material, nada abstrata) culminando em momentos de extrema literalidade, como na sequência na qual vemos por um bom tempo um gesto de sintonização de um rádio antigo. Pois é exatamente o que vamos ver nos minutos seguintes: um vigoroso exercício de ajuste de frequências, de criação de um tom comum, de um espaço compartilhado de onde se pode tecer ligações de semelhança entre os materiais.

A primeira evidência está indicada no título: trata-se de um endereço, a indicação de um espaço específico supostamente limitado. No primeiro segmento, o exame das fotografias guarda uma característica marcantes: a impressão. A imagem nos mostra fotos ampliadas e reveladas, o resultado do contato repetido entre luz, química e papel. Mais do que imagem, um objeto – matéria, enfim, sólida, com textura e, principalmente, relevo. Sua situação espaço-temporal é definida, está ali apresentada em seus limites: bordas aparentes e luzes incidentes denotam suas qualidades hápticas. Um objeto de uso, afinal. Um espaço sobre um outro espaço, uma espécie de jogo infinito de impressões. É da instauração desse jogo que sucede a força dramática: é da dinâmica da existência a interferência, e é da dinâmica do mundo material a inscrição mútua, a troca de partículas, a tal “ação do tempo” nas coisas.

Essa ação, que não distingue vivos e mortos, humanos e não humanos, é a ação privilegiada pelas lentes do cinema e também sua sina: o trabalho da morte. A cada amarelamento de papel ou sedimentação de rocha, temos ao mesmo tempo um desvelamento e uma ocultação do estado anterior; o tempo faz a matéria se desnudar e se esconder através de um único processo de exposição à duração. E não é outro o movimento desta obra de Bressane: verificar o presente superficial destas fotos e destes filmes, percebê-los simplesmente como matéria, translúcida, entregue à ação do tempo (deteriorada ou agraciada, a questão é o lugar de onde se vê). Seu cuidado de articulação é modular essa possibilidade de ponto de vista através da escolha de uma estabilidade estratégica: ficar no mesmo lugar, permanecer.

O anti-humanismo que vai se almejar aqui é de ordem mineral: o gigante de pedra é a instância organizadora do espaço (referência maior que caracteriza o relevo da cidade do Rio) mas Bressane também a torna instância organizadora do tempo. Se há uma biografia aqui, talvez seja a da pedra, do que ela viu e do que ela pode vir a ser. A questão que se coloca é: qual é o seu tempo? Como inscrever algo na pedra, como causar-lhe uma impressão? A resposta não poderia ser mais simples: pela repetição, pela insistência. O estabelecimento da frequência se dá nesse exercício burlesco de levar a exaustão uma experiência de lugar , uma demonstração de uso de um local. Há um propósito científico de mapeamento, de observação pura dos fenômenos em sua realidade mais imediata: superfícies, cores, volumes e som. O jogo então se inverte: o que observamos é ação do espaço sobre os corpos e tudo mais que muda ao passar por ele.

As canções que acompanham este ensaio (no sentido mais musical, novamente: afinação, repetição, ajuste de frequências) formam uma dimensão reiterativa e sutil, dando relevo a esse método circular (não por acaso, todas com sua textura de vinil, apontando uma sensação para uma situação material concreta da agulha através dos sulcos da bolacha) e sublinhando esta estratégia de observação baseada no retorno incessante. Essa forma de agir permite ao mesmo tempo uma atenção aos detalhes, às pequenas inscrições, mudanças de luz, modulações de cor e movimento mínimos, e à infinita insignificância da presença humana se pensada na escala do espaço que habitamos, caso medida pela pedra. A repetição detona essa risibilidade das performances que é também a nossa própria: tanto ao acreditar em nossa relevância em alterar os rumos da vida, quanto de perceber que o que chamamos de vida é somente a criação de um intervalo arbitrário, de uma forma de observar que vai buscar uma unidade qualquer para poder conceber um espaço de relações possíveis.

O cinema como litografia, como inscrição rupestre, como gesto de contato e mistura entre superfícies, como estabelecimento de um espaço limitado, ínfimo de onde podemos fazer o vão e prazeroso exercício de tentarmos ser notados, de almejarmos durar fora de nós, no que resta de nós no resto das coisas. Se esse sonho é impossível, de igualar a duração de uma pedra, de entrar no ritmo de seus movimentos, de dançar sua música para ser por ela percebido, é somente esse hábil método de exposição e reexposição que pode revelar a medida de nosso feliz fracasso diante da tarefa. É esta generosa ação que à nossa percepção aqui então se oferece.

Dezembro de 2012

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