in loco - cobertura dos festivais
Route Irish, de
Ken Loach
(Reino Unido/França/Bélgica/Itália/Espanha, 2010)
por Paulo Santos Lima
O
bem fazendo o mal (na tela)
Esse cinema bonzinho, mandatário
da boa ação, da causa justa e da conscientização humana para um
mundo melhor, é legitimado por uma confusão que o coloca numa
função que deveria, a princípio, caber ao jornalismo – além, claro,
pela crença de que as artes têm de cumprir um papel. Na ausência
de uma instituição ou mídia estabelecida que ponha a público
fatos desairosos do globo
terrestre, esses filmes, cujo estilo é idem ao de um Telecurso
2o grau ou o de um discurso
de palanque, ganham respeito – desrespeitando alguns princípios
da criação artística (e aqui poderíamos ir a Sganzerla
falando sobre cultura e arte etc). É somente pela
forma, pelo estilo, que o cinema pode ser político – sem fazer
política. Atitude que deveria ficar no que antecede sua função
de cineasta. Fazer cinema é um gesto político. Fazer política,
nem sempre é um gesto cinematográfico. Ken
Loach, por exemplo, faz política em seus filmes. Sujeito engajado,
militante de uma esquerda pura num momento em que direita, esquerda e
centro são meras orientações de trânsito, seu trabalho não transcende
os chavões do didatismo e do sentimentalismo fuleiro, esse que serve
tão bem às telenovelas ou romances baratos vendidos a poucos reais
em bancas. Loach é, ainda,
muito respeitado, graças ao vácuo: a falta de uma justiça histórica
num mundo tão arrebentado, a ausência de prumo das instituições
e mídia, a inexistência de um entendimento sobre o que é cinema.
Route Irish é isso: uma atitude de um Loach
politizado que pretende criticar uma determinada causa e consequência
geopolítica. O filme denuncia o envolvimento britânico na Guerra
do Iraque, apontando a mira aos que lucram com o conflito, administrando
empresas privadas que auxiliam na segurança no território iraquiano,
e cujos “seguranças”, armados ao nível da militaria, tumultuaram
ainda mais o cenário caótico do país, devastado pelos conflitos
entre soldados americanos e opositores. O filme acompanha, desde
o início, Fergus (Mark
Womack), que perdeu o
amigo, Frankie, na tal rota do título, entre Bagdá e a Zona Verde,
considerada a via mais perigosa do mundo. Ele, já perturbado de
antes, violento ao nível do personagem bebum de Peter Mullan
em Meu Nome É Joe,
também integrou as Forças Especiais britânicas que ajudaram os
EUA no Iraque e, assim como Frankie, preferiu o dinheiro fácil
e trabalhar numa companhia de segurança particular no Iraque.
Pronto: Ken Loach constrói
um personagem de dentro do sistema, com justa crise pessoal, arrependido,
e que lutará pela justiça.
Claro que Loach,
numa inclinação que lhe é característica desde seus (ótimos) docudramas para a TV
britânica, como Cathy Come Here (1966), em vez de realizar um documentário sobre o assunto, optou
pela dramaturgia. Assim, Route Irish, trazendo item grotesco da política contemporânea, envereda por um
gênero que poderia ser chamado de thriller dramático. Loach
fere um princípio da ação política, que diz que o ato vem como
reação ao fato, e não a um impulso psicológico. Loach fere, também,
princípios do bom cinema, que defende a encenação como fim legítimo
para qualquer ponto de partida temático. A
fusão do cidadão e cineasta gera o mais discutível e, pasmemo-nos,
adesista (e, no caso da invasão do Iraque, fascista, portanto)
filme de Ken Loach. Fergus é motivado em descobrir quem de fato
matou Frankie porque eles eram quase irmãos, amavam-se como tais.
Para auxiliá-lo nas investigações, haverá o bom árabe, ou seja,
um iraquiano residente em Liverpool que é bom pai, bom homem,
bom músico que inclusive nos mostra seu talento e civilidade,
tocando e cantando ótima música. Num filme que delimita muito
os papéis dos personagens, sem nuances, está claro que o único
iraquiano que pode existir como ideal é o bacana que ajuda o protagonista
justiceiro. Fergus, como os brutamontes do cinema B de ação americano
dos anos, fará justiça na mesma medida, explodindo carros de poderosos
e torturando o “vilão” Nelson, o mais cruel dos ingleses funcionários
da empresa, que matava por diversão no Iraque. É assim que Loach
convida para o engajamento do espectador à sua causa – fazendo
um fuleiro filme de ação.
Loach,
finalmente, faz o pior quando utiliza imagens de arquivo e imagens
encenadas como se fossem documentais. As primeiras surtem um efeito
hediondo. Com trilha sentimental, vemos cenas horríveis, tristes
mesmo, de iraquianos feridos, crianças mutiladas e outras tantas
vítimas da hedionda invasão americana. Há um momento específico
no qual o filme torna-se “estético” (estético, a partir de uma
imagem real, de arquivo), criando assim um efeito: no zoom
a uma criança ferida, o que fica na tela é a quadriculação
do digital da imagem hiperampliada.
Da dor de alguém, Loach
extrai um efeito mobilizador
para adensar o drama em seu filme. A intenção, se serva
ao filme, certamente não serve ao homem – o que só faria se houvesse
uma forma maior, um estilo que aspirasse à transcendência. É a
dialética hegeliana, que poderia bem servir de exemplo para que Loach
não fizesse uma aula primária, mas um estado de imagens que tirasse
da letargia um planeta Terra que assistiu, dócil e em silêncio
conivente, à maior vergonha da nossa história recente: a invasão
de um país traduzida cinicamente como gesto de assistencialismo
democrático. Assim como o mundo pós-11 de Setembro, grosseiro
e desmedido, Route Irish não é sutil. Seus primeiro e último planos mostram as águas onde
o herói em crise de consciência vai se sacrificar. Hitler também
se matou. E, junto ao amigo Goebbels também via o cinema como
uma ótima ferramenta política.
Setembro
de 2010
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