eletrônica
A emergência do rosto: de Páginas
da Vida ao Horário Eleitoral Gratuito
por Ilana Feldman
Há
algo em comum entre Páginas da Vida e o Horário Eleitoral
Gratuito. Ou melhor, há algo em comum entre os depoimentos de
anônimos ao final de cada capítulo da novela (aqueles que adquiriram
notoriedade com a mulher falando sobre a masturbação)
e as falas de personagens desconhecidos que habitam o Horário
Eleitoral Gratuito (e aqui não nos interessa os candidatos à Presidência
e ao Governo do Estado, mas aqueles até então na invisibilidade
da aspiração política).
Os primeiros, singularidades
sem nome, sem uma identidade previamente estabelecida – a não
ser aquela que se dá a ver pela inscrição do tempo e da condição
social em seus rostos -, não falam para alguém, nem sequer para
um entrevistador, mas para todos, universalizando suas experiências
pessoais através das estratégias “emocionalistas” que compõem
as narrativas dramáticas. Os segundos, máscaras de identificação,
querem, de modo diverso dos testemunhos anônimos, singularizar-se,
diferenciar-se da oferta amorfa dos rostos de candidatos – até
então, ignorados. Estes não falam para todos, mas para você, eleitor;
você, consumidor; você, espectador, utilizando as mesmas estratégias
fáticas do discurso publicitário (em grande parte dos casos, também
“emocionalista”). Assim, se uns querem dissolver-se e atingir
um ideal de ser comum, genérico e qualquer, outros precisam fazer
da excentricidade e extravagância enunciadas seus modos de ser.
Mas, não nos enganemos:
ambos são performáticos, cada um a seu modo. Nos depoimentos desprovidos
de nome após a novela, a performance narrativa – presença cênica
e eficiência dramática – assenta-se nos cortes, no fatiar das
falas anônimas e tranqüilas, a fim de produzir uma continuidade
coerente de sentido, provida de densidade emotiva. Já nas falas
dos candidatos desconhecidos, a performance narrativa está na
própria produção dos nomes, das identidades numéricas e partidárias,
que será guilhotinada por um único e brusco corte final. Curtos
planos-sequência cujas falas não têm tempo para respirar, sendo
sustentadas por posturas retesadas, teatralmente à vontade ou
naturalmente constrangidas.
Vemos, então, que se
os anônimos depoentes singularizam-se na medida em que narram
suas experiências, os desconhecidos candidatos anulam qualquer
possibilidade de singularidade no momento em que reivindicam para
si uma categórica identificação, fixa e unívoca. No entanto, se
as estratégias de utilização e apropriação desses personagens
são diversas – do marketing social da novela à propaganda política
–, os efeitos dialogam entre si. E aqui é revelado o que esses
homens e mulheres ordinários têm em comum: seus rostos. Desprovidos
dos corretivos photoshop e baselight (um novo programa
de maquiagem digital utilizado sobre as faces dos atores de Páginas
da Vida) esses rostos costumeiros, habituais, “normais” e,
sobretudo, hegemônicos na paisagem humana das grandes cidades,
provocam um curto-circuito nas habitualmente assépticas imagens
televisivas. Há algo de “selvagem”, de não-domesticado, que irrompe
nessa topografia das faces, último reduto do que se costuma chamar
de humanidade.
Talvez, para compreender
essa sensação de profundo estranhamento provocada por essas imagens,
marcadas por uma espécie de abismo em relação aos convencionais
modos de captação/representação, seria interessante pensar no
conceito deleuziano de rostidade: o rosto como lugar
de inscrição de forças sociais, econômicas e subjetivas. O rosto
como produção social, como função. Mas também, e, sobretudo, como
simultânea possibilidade de esfacelamento da identificação. Como
diria Deleuze, nossas sociedades têm necessidade de produzir rostos,
de sobrecodificá-los (e os rostos domesticados dos atores profissionais
bem demonstram isso). Importa então desfazer os rostos, tal como
são apresentados, e possibilitar a emergência de rostidades
mais selvagens, dissonantes e, por vezes, desconcertantes. A julgar
por nossa noturna (e momentânea) grade televisiva, estamos no
caminho para uma abertura a outro tipo de sentido.
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