in loco - cobertura do É Tudo Verdade
Alguns achados entre os filmes achados por
Eduardo Valente
Programa Especial Jay Rosenblatt
Bloqueio (Blokada), de Sergei Loznitsa (Rússia, 2005) -
O Estado das Coisas É
curioso o termo em inglês para os filmes feitos a partir de material de arquivo:
found footage (“filmes encontrados”). Soa engraçado porque, na maioria
das vezes, trata-se muito pouco de “achar um filme” a partir de um material desconhecido
(e aqui pensamos em filmes como Da Janela do Meu Quarto, de Cao Guimarães,
que, sem ter um só fotograma de arquivo, é muito mais um “filme achado”), mas
sim de ir em busca de um material pré-existente para fazer um determinado filme.
Ou seja: em grande parte do cinema de found footage o “found” se refere
bem menos a tal material ter surgido sem nenhum aviso prévio do que ao ato de
se encontrar em filmes de outrem, e/ou de antão, os significados que se desejava
previamente construir. Tomemos como exemplo Human Remains
(foto acima), o mais conhecido/premiado filme do americano Jay Rosenblatt (que
teve uma mini-retrospectiva de seus trabalhos dentro do É Tudo Verdade deste ano,
tendo passado a semana do festival por aqui, como parte do júri da competição
internacional): nele, Rosenblatt usa materiais de arquivo com imagens de 5 ditadores
(Hitler, Mussollini, Stalin, Franco, Mao) para compor um filme que busca, a partir
de uma auto-irônica narração em off em primeira pessoa que “dá voz” a cada
um deles, tentar recompor a memória coletiva de um século de imagens do poder
exprimindo a velha questão sobre a “banalização do mal”. Desde
o primeiro fotograma (que é um plano realmente brilhante em que aquilo que parece
a princípio um gesto paternal de carinho com uma criança recebe todo um outro
significado quando, em câmera lenta, revela-se que a mão do adulto pertence a
Hitler), o que o filme deseja é criar uma reação de identificação/repulsa entre
o espectador e aquelas cinco figuras. Rosenblatt vai atrás daquelas imagens, portanto,
para fins bem específicos: sabe exatamente o que precisa encontrar em cada uma
delas, e que efeitos causar no espectador. É justamente neste sentido, aliás,
que o filme bate de frente com sua maior fraqueza: seu expediente é tão cristalino
na sua construção que, ao final da passagem do primeiro para o segundo ditador,
a sensação é que já não precisamos mais acompanhar o filme para entender suas
articulações. Talvez por isso, seja o filme de Rosenblatt que menos me interessa:
embora tenha um impacto emocional inegável com a maior parte das platéias, me
parecem bem mais interessantes dois filmes onde o trabalho de Rosenblatt vai mais
na direção da mistura entre as esferas do imaginário pessoal e o coletivo: os
recentes Phantom Limb e I Just Wanted to Be Somebody. No
primeiro, Rosenblatt investiga o sentimento da perda a partir não só de uma experiência
extremamente pessoal (a morte de seu irmão, com oito anos de idade, no início
dos anos 60) como de um material de arquivo igualmente próximo: os filmes de família
em Super 8, feitos por seu pai, e que traziam sua própria imagem de criança brincando
com o irmão. Partindo daí, o cineasta cria um paralelo entre a morte de uma pessoa
tão próxima com a perda de um membro do corpo, no que ele faz uma mistura bastante
curiosa entre os materiais de arquivo com a filmagem de entrevistas e imagens
por ele mesmo. Nessa mistura do pessoal com o universal, o filme atinge um efeito
bastante forte de transformação do material de arquivo em fonte de uma memória
coletiva – o que é uma das características mais exploradas, em geral, pelo cinema
do found footage. Retiradas de seu contexto exato (não sabemos quem é aquela
mulher que grita, e por que ela grita), as imagens de arquivo passam a significar
muito menos o específico (o grito de uma determinada mulher) e muito mais o geral
(a angústia que leva ao grito, que é de todos nós). Em Phantom Limb, Rosenblatt
usa este efeito com muita eficácia. Já em I Just Wanted
to be Somebody, Rosenblatt incorpora uma outra camada nesta relação entre
vida pessoal e vida pública, a partir da história de uma “celebridade” americana,
a cantora e atriz Anita Bryant. Bryant, de fama um tanto relativa como artista,
ficou célebre no final dos anos 70 ao se tornar “porta-voz” de um movimento conservador
que conseguiu, na Flórida, passar uma lei (via referendo) impedindo a aceitação
do casamento homossexual. Em termos dos filmes de Rosenblatt, a grande novidade
aqui é a não-restrição ao material mais comumente usado nos filmes de found
footage (imagens de arquivo em película “sem assinatura”), através da incorporação
das imagens de TV (jornalismo, comerciais, etc). Nesta adição de fonte, Rosenblatt
consegue perfeitamente compor um retrato tipicamente “americano” da quebra de
fronteiras entre vida pública (como artista, como ativista político) e a vida
pessoal (através do uso de imagens de filmes de família de Bryant), o que no caso
específico do filme e de Anita Bryant tem um duplo significado: primeiro, com
o uso de uma persona pública para influenciar uma decisão política e coletiva;
e depois com a repercussão desta influência trazendo enorme peso sobre a dimensão
da vida pessoal (falência financeira, fim do casamento, etc). Discretamente (que
é tudo que Human Remains não é), Rosenblatt faz aqui um tremendo filme
político. Em todos os filmes de found footage de Rosenblatt,
uma curiosa observação pode ser feita sobre a força do som como índice de realidade/abstração
no cinema. Afinal, não foi por acaso que figuras como Charles Chaplin receberam
a inovação do som como uma possível perda para o potencial artístico e criativo
do cinema: quando conectado à uma determinada imagem, o som (direto, em especial)
empresta a ela uma dimensão de realidade muito maior do que a que tem uma imagem
não sonorizada. Notamos assim que, por mais que a indicialidade da imagem cinematográfica
(ou seja, sua relação direta com objetos e seres que existem no “mundo real”)
a torne aparentemente mais realista que uma pintura, de fato ela só se torna plenamente
“real” para os nossos sentidos a partir da confirmação do efeito daquela imagem
sobre o mundo que é emprestado por um som naturalista. Não por acaso, os filmes
de Rosenblatt inúmeras vezes retiram o som de uma imagem “de arquivo”: nesta operação,
o que era o registro simples de um momento banal automaticamente passa a ganhar
um peso simbólico e uma irrealidade que o tornam livre para mais facilmente significar
o que quer que o diretor deseje que signifique. Mas, o que acontece se fizermos
a operação contrária, e recriarmos o ambiente sonoro de uma imagem que não possuía
qualquer som direto captado junto com ela? Esta
parece ser a grande pergunta que Bloqueio, filme do russo Sergei Loznitsa,
se impõe. De uma simplicidade de operação à toda prova, Bloqueio impõe
uma quantidade razoável de questionamentos (inclusive éticos) sobre sua realização.
O que Loznitsa faz é, aqui sim numa autêntica operação de found footage
(já que utiliza um material até pouco tempo desconhecido), recriar uma “narrativa”
dos 900 dias de cerco dos nazistas a Leningrado. De que maneira ele faz isso?
Sem qualquer narração em off, letreiros contextualizantes, explicações
históricas: ele simplesmente ordena dentro de uma certa cronologia destes 900
dias uma série de imagens recém-descobertas em arquivos de Moscou, da vida dentro
de Leningrado naqueles dias. Mas, sua única intervenção é uma radical: Loznitsa
sonoriza cada uma dessas imagens, dando a elas uma ambiência absolutamente realista
a partir de um dispositivo que é tudo menos real. Com um cuidado às beiras do
obsessivo, o filme reproduz cada som daquilo que vemos em cena: dos mais ruidosos
(como carros que passam, fogos de artifício, alarmes de ataque aéreo) aos mais
delicados (uma criança que corre no canto da imagem, a água que escorre na parede
de um prédio, o sino do bonde que passa bem ao fundo). Para
além do elogio do feito técnico conseguido (que, realmente, impressiona), fica
uma enorme dúvida sobre os objetivos e os efeitos da operação do filme. Se por
um lado não resta dúvida que o som direto ali empregado torna a experiência de
assistir ao filme algo de muito mais imersivo do que seria sem ele, dando a ele
um efeito bastante hipnótico a partir do sentimento de “dividirmos” aquela realidade
de alguma maneira com as pessoas na tela, por outro, ficamos nos perguntando se,
pelo fato desta ser uma experiência eminentemente “invisível” (ou seja, para quem
não entenda o mínimo sobre realização de cinema, fica a impressão de que não houve
qualquer trabalho de manipulação a posteriori sobre aquele material), não
ter efeitos extremamente complicados na criação de uma “realidade virtual” aceita
como retrato do real. Mais do que isso, ao lidar com cenas de uma violência radical
(especialmente quando o frio e a fome começam a fazer suas vítimas), o filme acaba
nos impondo problemas ainda mais complexos: assim como há algo de imoral na encenação
“para emocionar” do horror dos campos de concentração, não haveria algo de intrinsecamente
grotesco na recriação em estúdio do som de corpos (absolutamente reais) sendo
atirados numa cova coletiva? “Recriar” o som de um corpo, que só caiu sobre outros
uma derradeira vez, emitindo um determinado som ao fazê-lo, não seria obscenamente
uma violação dele? Cada pergunta destas nos assombra ao longo
do filme, mas uma coisa é inegável – e talvez seja ela que justifique toda a arquitetura
sonora que Loznitsa constrói: após quase meia hora de uma verdadeira “avalanche
sonora” que o filme nos impõe, a imagem dos primeiros cadáveres no meio das ruas,
obviamente imóveis (e, portanto, sem produzir sons), produz um silêncio que ressoa
com um volume tal que seria impossível num filme totalmente silencioso. Ali, o
artifício se justifica (ainda que não sem problemas), e o filme revela um poder
de comoção numa imagem de uma maneira que talvez ela por si mesma não tivesse.
E é ao atingir este efeito que um filme de found footage encontra seu mais
perseguido objetivo. editoria@revistacinetica.com.br
|