edição especial curtas brasileiros
2009 O campo-lar por
Fábio Andrade
Rosa
e Benjamin, de Cléber Eduardo e Ilana Feldman (São Paulo, 2009)
Rosa
e Benjamin não é exatamente um filme-conceito,
um filme teórico, um filme narrativo, ou sequer um filme descritivo. A ação na
qual ele parece investir com maior propriedade é a de demonstração. Não
temos sugestões ou indicações, apenas ações que são mostradas em cena de uma maneira
particular. Um casal de idade avançada conversa sobre um novo vizinho; um avião
parte do aeroporto; uma mulher crava os dedos num vaso de terra. São elementos
que o filme – antes de qualquer coisa – mostra ao espectador. Se Rosa
e Benjamin é uma obra demonstrativa, é um filme do (e não sobre o)
campo cinematográfico – a clareira onde os elementos são colocados em cena,
recortados do mundo pelo enquadramento. Vemos o que nos é dado a ver. Cléber
Eduardo e Ilana Feldman parecem retomar Desencanto, de David Lean, mas
com uma mudança de ponto-de-vista: se lá acompanhávamos a excitação do flerte
extra-conjugal da mulher, aqui ficamos ao lado do marido, aquele que junta as
peças e surpreende sua esposa por, em silêncio, ter total compreensão de tudo
por o que ela passa. Aqui, sabemos estar do lado do marido por um simples truque
de fotografia: em um plano em que vemos os dois protagonistas em ambientes distintos,
a película está respondendo à temperatura de cor do cômodo onde está Benjamin,
deixando Rosa no ambiente que tem as cores deformadas. No filme de David Lean,
o marido aparecia sempre preenchendo uma revista de palavras cruzadas, contrapondo
informações que constroem, ao final, um julgamento da situação (seja ela a formação
da palavra, ou a percepção de um adultério). Rosa e Benjamin demanda, do
espectador, uma postura parecida, oferecendo elementos concretos que, mais do
que indícios, são os índices do filme. Rosa fala de Alfredo, vizinho que
nunca chegamos a ver, mas que ela chama com a intimidade que suaviza os pronomes
de tratamento. Alfredo existe; Rosa o conhece, e fala sobre ele com o marido;
eles moram perto de um aeroporto; eles parecem viver juntos há anos; temos a casa
e a cidade. Lar. Cruzamos todas essas informações e saltamos os limites do campo
para construir uma impressão: há o dentro e o fora; o trabalho e o cuidado doméstico;
o homem e a mulher; o humano e o arquetípico; o velho e a novidade. Pela demonstração,
os diretores nos convidam a transgredir os limites do campo. Essas
extrapolações, porém, são nossas, não do filme; o filme apenas mostra.
Estaria em curso uma traição? Não temos motivos para dizer que sim, ou que não.
Pois para se aproximar de Rosa e Benjamin é preciso se ater ao que é demonstrável:
Rosa fala de Alfredo, e o chama pelo primeiro nome. Isso é tudo. Mas o campo cinematográfico
é uma clareira, e a clareira é o espaço filosófico onde os entes se apresentam
em toda a sua ambigüidade. No filme, esse campo é povoado por signos que suscitam
leituras contraditórias: o avião que pode simbolizar tanto a partida quanto a
chegada (em dado momento, Benjamin profetiza sobre o dia em que um avião por fim
cairá sobre seu telhado); Rosa, mulher-flor enraizada em um pequeno vaso de terra,
mas que demanda cuidados e atenção particulares para se manter viva e resplandecente;
o “fora” que se apresenta como respiro, como fuga da prisão do “dentro”; ou então
o “fora” que reafirma o “dentro”, onde reconhecer a possibilidade de partida é
afirmar o desejo de ficar para além da inércia, do hábito, da facilidade.
Demonstrar
é afirmar o não-absoluto do concreto, chamando a atenção para a moleza daquilo
que costumamos ver apenas como “duro” e da multiplicidade do que nos parece uno.
A arte funciona como uma clareira desestabilizadora dos objetos: nada é definido
Remontar essa amibiguidade dos entes já é, por si só, uma ação bastante desestabilizadora.
Perdemos, com isso, o olhar acostumado, tão entorpecido pelos hábitos do mundo
que não mais percebe sua distribuição interna para além da utilidade. Mas, mais
do que isso, a ambiguidade (em especial quando assimilada com tanta discrição,
como é o caso de Rosa e Benjamin) devolve a consciência de que estamos,
o tempo todo, a fazer escolhas. Por ela, retomamos a sensação do peso e da leveza
ao determinarmos o que chamaremos de “dentro” e de “fora”; em que momento seremos
niilistas, ou seremos conservadores; quando um avião vira símbolo de partida,
e quando é símbolo de chegada. A operação realizada pelo
filme é a de trazer estes signos específicos para esse espaço de reconfiguração,
na política que, antes de determinar se vamos à direita ou à esquerda, nos mostra
que chegamos a um entroncamento. O campo se faz não pela recusa, mas justamente
pela afirmação de o que ele traz de fora para dentro. Ele funciona, no
filme, como a idéia de lar – no que cabe lembrar a frase feita, mas extremamente
cabível: home is where the heart is. Como em Yasujiro Ozu, o cinema é reassumido
como espaço do “dar a ver”; a reflexão existe para além do filme, a partir dele.
No prefácio da coletânea de críticas A Magia do Cinema, Roger Ebert diz
que “cedo ou tarde, todo amante de filmes irá ter com Ozu, quando então perceberá
que os filmes não são sobre os processos de mudança, mas sim, sobre se se quer
ou não mudar”. A postura de cada espectador é intransferível e de sua própria
responsabilidade, e – ao mesmo tempo em que pouco diz sobre o filme, em si – é
o que ele tem de mais valioso. Janeiro de 2010
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