ensaio in loco - cobertura dos festivais
Novo cinema romeno (ou as narrativas
do tripé quebrado)
por Cléber Eduardo
12:08 Leste de Bucareste (A fost sau
n-a fost?),
de Corneliu Porumboiu (Romênia, 2006)
Como Festejei o Fim do Mundo (Comment
j'ai feté la fin du monde),
de Catalin Mitulescu (Romênia/França, 2006)
Doente de Amor (Legaturi bolnavicioase),
de Tudor Girgiu (Romênia, 2006)
Em
um determinado momento de 12:08 Leste de Bucareste, estréia
em longa-metragem
de Corneliu Porumboiu (ganhador da Camera d`Or
em Cannes 2006), o dono de uma pequena emissora de televisão questiona,
durante um programa de entrevistas do qual também é entrevistador,
por que o cinegrafista está subvertendo os enquadramentos. O cinegrafista,
que já havia sido repreendido antes por filmar um grupo musical
no estúdio da emissora com a câmera na mão, retruca na lata: "O
tripé quebrou". Pois essa imagem do tripé quebrado e seus
efeitos na imagem do programa (e do filme) podem ser tomadas como
metáfora-síntese desse e de outros dois filmes romenos presentes
no Festival do Rio e na Mostra de SP: Doentes de Amor,
de Tudor Girgiu, e Como Festejei o Fim do Mundo, de Catalin
Mitulescu (prêmio de melhor atriz para Doroteea Petre na mostra
Un Certain Regard).
Os três realizadores são estreantes, todos com
idade inferior a 35 anos. Essa proximidade geracional não explica,
completamente, as características em comum entre seus filmes,
já que, no estilo e nos enfoques, cada uma das obras tem suas
próprias distinções. Também não se pode vê-las apenas como resultado
de um outro tipo de proximidade – a cultural e geográfica com
os vizinhos ex-comunistas do Leste Europeu. Se é inegável o parentesco
desses filmes, em níveis variados, com certo cinema iugoslavo
(dos anos 70 em diante), também parece se insinuar, em suas dinâmicas,
algo próprio do contexto romeno, não apenas por serem fincados
no universo histórico/identitário do país (no fim ou após a era
Ceaucescu, ditador do período comunista, que caiu do poder na
virada de 1989 para 1990), mas, sobretudo, por adotarem ou serem
adotados pela "dramaturgia do tripé quebrado".
Se o cinegrafista de 12:08 A Leste de Bucareste
subverte o padrão de enquadramento ao tomar a câmera na mão no
estúdio de televisão, mudando o padrão "câmera no tripé"
até o momento da entrevista anedótica, nesses filmes também há
uma subversão da estrutura organizadora dos fatos exibidos. Esse
cinegrafista, portanto, sintetiza os cineastas. Cada um deles
parece dar uma banana para uma noção adequada de roteiro, abrindo
mão da organização para se concentrar na força autônoma dos fragmentos.
É como se o tripé do roteiro, para insistirmos nessa imagem tão
feliz, tivesse quebrado, abrindo passagem para uma narrativa torta,
às vezes destrambelhada, às vezes de entendimento rarefeito ou
confuso, mas que, justamente por conta dessa anarquia menos ou
mais controlada, impõe-se com frescor, vitalidade e originalidade,
ainda que com êxitos distintos (menos em Doente de Amor,
mais em 12:08 Leste de Bucareste).
Tomemos
como exemplo 12:08 Leste de Bucareste. A primeira metade
é uma reunião de fragmentos filmados com razoável rigor, câmera
fixa, um humor controlado, apresentando, com essas características,
ambientes e personagens, porém com uma noção rarefeita de evolução
narrativa. Temos já nesse começo a autonomia das partes sobre
a unidade do conjunto. De forma sutil, no entanto. Na segunda
metade, centrada na entrevista de televisão, dá-se adeus à sutileza.
Bem-vindos ao caos. A atitude da imagem, agora com poucas variações
de ângulo, muda completamente. O humor mergulha no insólito, sem
medo de perder a força com o esgarçamento e a repetição das piadas,
até porque se, realmente dá sinais de cansaço em alguns momentos,
o filme logo retoma o fôlego adiante. É um filme de momentos,
com a primeira metade empregada como prólogo com três núcleos
narrativos, e a segunda como um extenso curta-metragem progressivamente
anárquico, de dar câimbra no maxilar. As gargalhadas extraordinárias
da platéia mostravam que nenhuma comédia vista nos últimos meses
(com exceção, talvez, de As Leis de Família, de Daniel
Burman), conseguiu tal adesão de uma sala.
A piada de 12:08 Leste de Bucareste também
tem, à sua maneira, um lado sério com a história romena (ainda
que sem a seriedade cômica de Nanni Moretti em O Crocodilo).
O alvo não é Ceausescu, mas seus adversários. Durante a entrevista-show,
desmistifica-se o heroísmo de supostos revolucionários, que, em
22 de dezembro de 1989, horas antes do ditador cair, teriam protestado
contra o regime em uma cidadezinha. Mas teriam mesmo protestado contra
a presença do tirano ou apenas celebrado sua queda em praça pública?
Essa é a investigação feita, ao vivo, pelo apresentador do programa.
Sob suspeita, um professor de História (não por acaso), Manescu,
conhecido por suas bebedeiras. Ao seu lado, um velho hilário,
Piscosi (o impagável Mircea Andreescu). Insinuando um processo
osmótico no processo de transição política, que teria acontecido
em parte por sua própria corrosão, o filme propõe o acerto de
contas com o passado, mas apenas para ridicularizar esse resgate
e reivindicar um olhar para a frente, sem falsas mitificações
e sem ressentimentos engessadores. Não se trata de apagamento
da História, mas de uma libertação em relação a seus fantasmas.
Até porque coisas mudaram e outras permaneceram na substituição
do comunismo pelo capitalismo (como mostra o filme). Corneliu
Porumboiu faz dessa consciência uma tremenda piada.
Em
Como Festejei o Fim do Mundo, a História também é questão
central, mas não mais de forma retroativa. Com a mesma reivindicação
do "olhar para a frente", aqui retorna-se ao momento
Ceausescu em seu crepúsculo, até a queda no fim de 1989. Temos
como protagonista, também em uma pequena cidade, a adolescente
Eva – nome simbólico do Gênesis, pelo que carrega de desobediência
(em relação à autoridade divina). Estigmatizada como rebelde por
conta de uma travessura e de sua reação à punição, a moça, silenciosa
e tranquila em sua atitude de resistência à autoridade, planeja
fugir do país opressivo com um vizinho um tanto panaca. Estamos
em mais um filme com a dramaturgia do tripé quebrado: a sucessão
de elipses desdramatiza qualquer passagem (principalmente a da
fuga abortada), e o desfecho entra em cena chutando a porta. O
mais interessante, porém, é como um coadjuvante, irmão de Eva,
passa a ganhar espaço, quase sempre como observador do entorno,
com seu olhar de aprendiz infantil. O que importa, no fundo, são
as partes (mais uma vez), ou uma maneira de se filmar Eva e seu
irmãozinho. Seria essa liberdade de organização ou essa recusa
a um elo ordenador um acerto de contas retroativo com a ditadura
Ceausescu?
Se o ditador é uma questão nesses dois filmes,
sem dúvida, é porque a nova geração deseja enterrá-lo, seja pela
superação de sua figura, seja pela piada em torno de sua queda.
No entanto, em Doente de Amor,
Ceausescu é uma ausência. Estamos lá na Bucareste contemporânea,
sem figuras de autoridade explícitas, exceção feita a autoridade
(sem autoritarismo) dos pais das personagens. O que vemos, na
verdade, é o caos emotivo, motivado, ao menos em parte, pela subversão
de comportamentos (lesbianismo e incesto). Duas adolescentes se
envolvem, mas uma é amante do irmão. Subversão maior, porém, é
o efeito "tripé quebrado". Ele aqui se manifesta no
ruído entre a narradora e o enfoque sobre ela. Quem narra, na
verdade, é a coadjuvante – mas, entre suas palavras e as ações,
há um deslocamento. Essa opção, somada às elipses, geram estranhamento,
não sem confusão. Se podemos tratar essa característica como um
problema narrativo ou dramatúrgico, também temos de relativizá-la
dentro desse contexto de liberdade organizadora, que, com resultados
distintos, conferem aos três filmes romenos um traço de saudável
anarquia.
editoria@revistacinetica.com.br
|