Um Romance de Geração,
de David França Mendes (Brasil, 2008)
por Eduardo Valente

Espelho vazio

Quase no final de Um Romance de Geração, o elenco do filme e o autor do romance que deu origem a ele (Sérgio Sant’Anna) dedicam-se a ler integralmente, em torno de uma mesa, o desfecho do livro. Ali, naquele momento, conseguimos partilhar de verdade pela primeira vez o fascínio que claramente moveu o diretor/roteirista David França Mendes na direção de sua adaptação: os múltiplos espelhos que atingem os dois únicos personagens (o escritor Carlos Santeiro e uma jornalista), e que refletem-nos sobre si mesmos indefinidamente, como metáforas da criação artística enquanto teatro da vida. Só que não deixa de ser irônico que o material só se torne efetivamente engajante quando cessa de tentar multiplicar os próprios espelhos que o autor havia já havia plantado originalmente na sua obra, ou sejam quando decide dedicar-se a ela e não tentar, a fórceps, colocar-se como instância criadora de novos sentidos a partir dela. Não se tratar, de forma alguma, de dizer que toda adaptação precise ser fiel ao seu original, longe disso (e, muitas vezes, até pelo contrário). A questão que se coloca é tão somente de risco e resultado: uma vez que se decida tomar liberdades sobre e a partir de uma obra de um autor admirável (como é o caso em pauta), o problema é que será preciso tentar falar com ele de igual para igual, e é isso que o final comprova que o filme não consegue atingir, uma vez que uma simples leitura palavra por palavra da obra original se sobrepõe tão claramente a tudo aquilo que veio antes.

Talvez ficar procurando motivos para esse, assim chamemos, “fracasso” seja um exercício inútil, daqueles que de vez em quando aproxima o trabalho do crítico ao de um médico, que procura diagnosticar o que está errado, e apontar possíveis “remédios”. Se acaba sendo uma das formas de se tratar este ofício, não me parece nem de longe a mais exata ou mais interessante – inclusive porque, como muito acontece na medicina, os diagnósticos são freqüentemente imprecisos, já que uma virose pode ser tão abstrata quanto alegar simples “falta de talento”. Ambos falam sempre mais das impossibilidades e limitações da medicina e da crítica do que da materialidade de uma enfermidade ou de um filme. No entanto, como por sorte a vida de ninguém está em jogo (ou pelo menos não deveria estar), no exercício crítico podemos nos dar ao luxo de aventar hipóteses, procurar caminhos e tatear um tanto no escuro sobre essa matéria tão etérea quanto podem ser muitas vezes as imagens e sons, e principalmente suas articulações. Embora neste caso não seja nada impreciso dizer que há algo de claramente palpável no fracasso do filme em atingir uma existência de fato, uma vez que é evidente um enorme descaso com o meio onde érealizado (imagens em movimento), algo evidenciado numa fotografia cuja baixa definição leva a pixelizações e indefinições absolutamente inadequadas para projeção numa tela grande (em nada ajudadas pelos movimentos de câmera, quadros e iluminação, diga-se). Não se trata de preciocismo, mas algo de que fala o próprio Sérgio Sant’Anna no filme: a questão do “impacto estético”, que no cinema passa afinal por “detalhes” como estes.

No entanto, se este descaso estético apenas fragiliza mais Um Romance de Geração, parece existir um outro motivo mais profundo que torna a experiência de assisti-lo tão incompleta, e este certamente passa pela opção pelo formato desconstrutivo, que espelharia aquilo que no original de Sant’Anna já era um espelho. Esse duplo espelhamento é um pouco o oposto do que acontece numa das influências assumidas por França Mendes, o Tio Vânia de Louis Malle. Não porque Tchekov seja maior ou melhor que Sant’Anna (embora provavelmente o próprio concordaria com isso), mas simplesmente porque os seres que o autor russo cria são de uma tal materialidade que investigar do que eles são feitos parece exatamente isso: uma pesquisa sobre algo com presença e peso (o que nos leva inevitavelmente a uma outra comparação, talvez injusta, mas inevitável pela coincidência do momento de lançamento dos filmes, com Moscou, de Eduardo Coutinho, também ele uma elocubração sobre a criação a partir de um texto de Tchekov). Já no original de Sant’Anna, os dois personagens já são em si mesmos metáforas e espelhos sobre si mesmos, muito mais do que “personagens de carne e osso”, e jogar espelhos sobre estes espelhos talvez faça pouco mais do que revelar sua pouca materialidade. Afinal, um espelho frente ao outro, sem objeto entre eles, refletirá apenas molduras e vazio, e é isso um pouco o que sentimos ao ver o filme. Na sua busca de revelar camadas e mais camadas de construção (a opção pela leitura na mesa, as entrevistas com o diretor, o uso de três atrizes em cena), França Mendes correu o risco de quem tira os véus todos apenas para revelar que por baixo deles não haveria de fato nada, e que o interessante era a figura que os véus formavam.

E aí não adianta colocar os atores encenando os diálogos, porque tudo soa não apenas falso, mas banal e quase patético (em especial no estado de "embriaguez constante" que se tenta emular). Não importa o quanto se quebrem as “quartas paredes” sobre Tchekov, a leitura de qualquer frase de um personagem seu restitui automaticamente a humanidade de quem o representa. Em Um Romance de Geração, esta humanidade original parece sempre distante, e quanto mais se encena ou revela, mais se fragiliza o material. Por isso mesmo, colocar três atrizes para interpretar “a jornalista” tem efeito prático nenhum: porque “a jornalista” é só isso, desde o começo: um invólucro vazio, um conceito em si mesmo, e aí não importa que seja uma, três ou vinte atrizes, não há uma, três ou vinte jornalistas diferentes em cena, mas simplesmente nenhuma. Tanto assim que não faz nenhuma diferença termos três atrizes para a jornalista e apenas um para Santeiro: os dois personagens registram uma mesma inexistência cênica para nós espectadores, sejam eles multiplicados ou unificados.

Quanto a isso é preciso se dizer, aliás, que Sérgio Sant’Anna prenuncia em cena, no próprio filme, as raízes do fracasso deste. Em determinado momento, ele revela que, mesmo estruturando o seu livro como uma peça, nunca quis de fato montá-lo como tal, nunca pensando-o para uma existência física. Essa consciência de que, nas palavras do autor, “seria preciso cortar 80% do que diz Santeiro” ou de que “o público todo iria embora no meio” é o que parece faltar a França Mendes: Santeiro e a jornalista não se sustentam sob as lentes da presença física do mundo, são apenas figuras e projeções mentais de um tempo. Não são as Irinas e Ivans de Tchekov, que de tão completa e radicalmente físicos, podem ser decompostos em pedaços que parecem continuar mesmo assim existindo eternamente no mundo. Santeiro e a jornalista, tirados das páginas de um livro para serem dissecados, simplesmente revelam-se como o que sempre foram: projeções imaginárias sem substância material. E isso não tem nada de errado, desde que deixado no campo da literatura.

Agosto de 2009

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