Rita Cadillac - a Lady do Povo,
de Toni Venturi (Brasil, 2007)
por Paulo Santos Lima

A retaguarda é a certeza do mundo

Projeto originalmente realizado para TV, Rita Cadillac – A Lady do Povo não é um grande exercício estilístico, tampouco uma discussão sobre a linguagem documental (a presença vez e outra do seríssimo Toni Venturi em cena é mais um ruído que uma questão ao filme). O longa segue a pauta usual nos documentários e telejornalismo, com planos encadeados, dinâmica “rosto-fala descritiva-imagem ilustrativa”, e é essencialmente um espaço de aparição para Rita Cadillac. O que o faz notável é a moral que torna essas imagens bastante despudoradas – o que é uma raridade na produção documentária brasileira de hoje.

Se estamos num filme, em princípio, chapa-branca (Rita puxa as histórias, parentes, profissionais e amigos tecem seus comentários sobre ela etc), a primeira seqüência mostra a grande rainha sem seus trajes de Cadillac, rosto lavado, cabelo com penteado doméstico, preparando com propriedade uma feijoada apetitosa. Logo depois, vemos Rita travestindo-se em Cadillac: pondo suas meias, deixando o portentoso e cultuado bumbito à mostra, antes de mascarado pela calcinha e calça colante, maquilagem dando o toque final à pantera. Esse processo de construção do Cadillac de Rita (e posterior desconstrução, feita verbalmente pela própria e visualmente pela câmera), tudo isso orquestrado por Toni Venturi, deixará inúmeras informações, memórias (para quem tem mais de 30, pelo menos), registros estéticos de uma mise-en-scène remota da televisão nacional. Além de grandes cenas (cenas mesmo, dramaturgia), como o casamento surpresa com seu amado, sem que o mesmo soubesse e, vendado, o rapaz achando que era uma festinha das “Brasileirinhas” (selo pornô para o qual sua majestosa noiva trabalhou com determinação), ou mesmo o frenesi testosterônico da homaiada querendo devorar aquele pedaço frenético de carne fêmea – não sem motivo.

Sem dúvida, se os relatos alimentam o mito Cadillac, a própria Rita, Rita de Cássia Coutinho, conta-nos sobre ser a Rita Cadillac. Há um tom bastante irônico nessa história oral, de uma mulher que tem plena consciência do seu papel na mídia, uma via dupla cuja relação desaguava no imaginário coletivo. É nisso, também, que o filme se faz valioso: utilizando um procedimento padrão, simplório até (que é recorrer a material de arquivo, riquíssimo, aliás, com Chacrinha, imagens de documentário feito pela BBC sobre Serra Pelada, Rita cantando toda gata seu “É Bom para o Moral” etc), o filme recupera evidências notáveis sobre um signo e seu significado. Toni Venturi triunfa, aqui.

Mas, de fato, o que mais reluz é o jogo aceito pela própria Rita. Aproveitando, talvez, seu lado deusa, reconstruindo-o ao mesmo tempo em que o implode implacavelmente, o que fica na tela é uma bela bomba acendendo sua rosa atômica, fazendo morte e também luz, cinza e pirotecnia. Rita, com lúcido distanciamento, inclusive constatando que foi seu corpo quem lhe abriu todas as portas do mundo, vai pelo caminho da pureza, pureza santa, ao revelar “tudo” ( “tudo”, com aspas, porque o que revela já é bastante para um filme se tornar algo essencial... repertório de dados, objetos e relatos costurados na duração cinematográfica). Não só saberemos que ela teve no corpo a melhor ferramenta para sobreviver em condições adversas, como que seus planaltos e montanhas carnais serviram a propósitos prostitutos, quando ela era nova e sob penúria. As lágrimas que regam esse relato, momento forte do filme, estarão ausentes quando a Rita anos 2000, com sua sólida auto-crítica, parte para o cinema de sexo explícito, sabedora que seu lado cantora e dançarina já apresentavam alta quilometragem. E o filme mostra-a em plena ação, nesses filmes, com uma franqueza tanto de imagem quanto do que ela diz sobre a náusea invasiva que é fazer essas coisas com câmera na frente e desconhecido dentro.

Não importa se por mérito do diretor ou de seu objeto (Venturi, afinal de contas, assina o filme, e merece louros), o fato é que Rita Cadillac, a Lady do Povo, com sua gramática bastante simples, com imagens de transparência total, direta, é uma obra de altas ambigüidades. Não há revelação, tampouco celebração prática. Ou há. Porque Rita conta seus infernos, deixa ver seu corpo esculpido pelo tempo, seu sonho de vida inteira de ter família, e o que vemos é uma mulher provando que viver não mata, que ali está uma belíssima fêmea empinada pela altivez, corpo remodelado e adaptado para novas aventuras no mundo. Um longa que resgata histórias, a história, para indicar e indiciar o presente.

A epígrafe com a qual termina o filme, aliás, soa tão redundante quanto reiterativa: “Quero ser enterrada de bruços para que as pessoas me reconheçam” (ou algo assim), frase da Rita, das Ritas. É para rir ou levar a sério, constatar vida ou saudade saudosa dos belíssimos idílios de Chacrinha com o “popular way of life”, a velha chacrete do Cassino do Chacrinha ou a nova Rita Cadillac 2007? O que esperar de um filme cujo personagem-objeto intermedeia tudo ao mesmo tempo em que escancara tudo, devassa coisas fechadas em caixas-fortes, tudo despudoradamente? A certeza, única certeza possível neste documentário, é algo que está na imagem: o derrière. O que não é pouco.

Outubro de 2007

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