Riscado, de Gustavo Pizzi
(Brasil, 2010)
por Fábio Andrade
Cinema do possível
Em
um dos seus textos mais interessantes, o semiólogo e teórico
de cinema Christian Metz dava à forma de 8 ½,
de Fellini, o nome de "construção em abismo".
A nomenclatura era emprestada do universo dos brasões (no
qual "abismo"; é simplesmente o centro, mas que
traz um bem vindo subtexto vertiginoso ao filme), e fazia referência
aos escudos que traziam um desenho de um outro escudo igual a
ele em seu centro, que por sua trazia outro escudo igual a ele
em seu centro, e assim sucessivamente. Segundo Metz, 8 ½
realiza essa construção em abismo, na qual
o filme não-realizável (o filme dentro do filme)
acabava por ser o filme, de fato. É como se um espelho
refletisse um espelho, que refletisse outro espelho, e assim sucessivamente.
Riscado, longa de estréia de Gustavo Pizzi, tem
intenções igualmente ambiciosas. Acompanhamos a
estória de Bianca (Karine Teles), uma atriz que trabalha
com eventos para conseguir se sustentar. Em dado momento, ela
faz um teste para um filme e é convidada para protagonizá-lo.
O diretor se encanta com sua estória de vida, e resolve
trazê-la para dentro do filme. Riscado é
o filme da vida de Bianca - logo, poderia ser também este
filme dentro do filme, que se inspiraria em sua biografia. O brasão
é enfeitado por outro brasão, e dentro dele há
mais outro: não se sabe mais onde esse jogo começa
ou termina, pois todas as camadas se completam em uma só.
Há, nessa própria estrutura, uma curiosidade primeira inevitável. Em primeiro lugar por essa atenção formal ser bastante rara no panorama nacional de hoje e de qualquer época. Enquanto a maior parte da tradição do cinema brasileiro confia ou na intuição artística ou na impressão de uma emoção do mundo (façamos exceção aqui a casos com o de Júlio Bressane, e o Santiago de João Moreira Salles), Riscado tem esse interesse raro pelo encaixe das peças, que ainda tem a virtude de nunca se sobrepor à construção de cada uma dessas peças, de fato. Ao contrário, há uma dedicação louvável à escritura das cenas, à maneira como cada ator (quase todos em momento bastante especial) se portará dentro dela, à combinação de fatores que melhor expressará formalmente o que a cena tem como coração. Riscado é um filme agradabilíssimo de se assistir simplesmente por ter uma estória interessante e bem desenvolvida; por nos dar a conhecer uma personagem por quem sentiremos empatia e que gostaremos de acompanhar até o final; por levantar situações e deixá-las suspensas por um instante, até que o desenrolar do filme volte a cada uma delas para lhes dar finalidade. Além disso, é um filme de momentos visuais bastante memoráveis, quando não realmente inventivos. A estrutura é o que evita que essas fortes pulsões evaporem no ar.
Essa
estrutura, porém, não impedirá que as pulsões
se manifestem em toda sua integridade. Riscado é
um caleidoscópio de formatos de tela, um patchwork
de bitolas e materiais diferentes que, mesmo quando justificável
(não é descabido interpretar o choque das poucas
imagens feitas em película no filme como vindas de uma
outra instância narrativa - é a câmera que
foge da estrutura e que torna mais complexo esse baile
de espelhos), é legítimo simplesmente porque parece
de fato mover seu diretor. Embora se engendre perfeitamente no
rigor da estrutura, esses momentos funcionam também como
licença poética, como se a estrutura permitisse
ao diretor fazer o que simplesmente lhe parece belo - e o melhor
exemplo é a sequência em que Bianca contracena com
Betty Page, em um número que, sozinho, reproduz a construção
em abismo com um jogo de lençóis e projeções
extremamente bem arquitetado; sem, com isso, tirar de vez os pés
do chão.
Se, por um lado, isso confere ao filme uma firmeza bastante rara
para trabalhos de estreantes, há momentos em que o gosto
da encenação por vezes briga com os limites do possível.
Alguns diálogos se alongam para além de sua potência
por um fascínio estreante de quem parece descobrir os encantos
possíveis de duas atrizes que contracenam (a conversa de
Bianca com a proprietária de seu apartamento é um
bom exemplo disso); a decupagem de diversas cenas parece um tanto
perdida, abusando um tanto da liberdade de quebrar o eixo sem
alcançar efeito significativo com essa quebra; diversos
enquadramentos são claramente impostos pela possibilidade
espacial da cena, colocando a câmera no lugar que permite
que todos os atores caibam no quadro - dispensando, com isso,
um mundo de possibilidades de mise en scéne e
de blocking que poderia enriquecer muito o filme. Ainda
assim, Riscado consegue lidar com suas limitações
sem recorrer à exposição da precariedade,
passando por elas com certa confiança e transparência
que chegam intactas ao final do filme.
Mas
o que parece fazer de Riscado um filme ainda mais bonito
é, justamente, a maneira como ele afirma o cinema. Pois
embora sua narrativa não fuja do desencanto (mesmo que
gracioso), Riscado é como um grande golpe à
Murnau na inevitabilidade da realidade. Pois, se em A Última
Gargalhada Murnau interromperia o filme com uma cartela que
expressava a compaixão do diretor pela personagem, e mudava
radicalmente seu destino, aqui isso se resolve com uma simples
afirmação de existência. E embora Bianca não
esteja isenta da tragicidade do mundo, das contingências
que a tiram do lugar de protagonista e a abandonam chorando maquiagem
borrada em um meio-fio do Centro do Rio, Riscado interfere
em seu favor: o filme, afinal, existe.
Setembro
de 2010
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