Rio (idem), de Carlos
Saldanha (EUA/Canadá, 2011)
por Fábio Andrade
Sonho
de indústria
Rio está fadado a estimular ao menos dois braços
de desrazão. O primeiro está no orgulho ufanista que
abraça o filme como uma linda homenagem ao Rio e ao Brasil,
enfim cumprindo o desejo tão frequentemente vociferado pela
classe média por filmes que mostrem "o lado bom"
do país e de sua mais representativa metrópole. É,
portanto, o tipo de relação que toma o cinema - uma
arte que, mesmo não apartada do mundo, responde a questões
que lhes são próprias - por publicidade, realizando-o
enfim como indústria de sonhos, capaz de consumar os nossos
mais desvairados desejos de afirmação e carências
de auto-estima. O segundo está na patrulha ideológica
que se alimenta de seu próprio complexo de inferioridade,
e que buscará nos macacos ladrões, na personagem abobalhada
do ornitologista Túlio (com voz de Rodrigo Santoro) e em
todos os diversos erros factuais (para quem habita este espaço,
Rio é um retrato tão inexato da cidade quanto
as back projections de Interlúdio, de Hitchcock,
e isso nada tem a ver com cinema), metáforas forçadas
para reconhecer no filme mais um exemplo de ignorância e dominação
yankee - e que isso seja feito por um brasileiro, um expatriado
servindo ao "inimigo", serve só como combustível
para aprofundar o despropósito.
De fato, Rio oferece substrato suficiente para esse tipo
de leitura. Isso não impede, porém, que ambas estejam
bem longe de dar conta do filme. Afinal, Carlos Saldanha tem o visível
cuidado - diria até excessivo - de relativizar os vetores
principais de sua encenação, seja criando um contraponto
não só visual entre o Rio de Janeiro e a cidadezinha
do interior do Minnesota, seja pensando a cidade mais como uma rede
de tensões dramáticas do que de fato como um cartão
postal ou uma ficha criminal. Pois se há algo marcante no
grosso da produção de animação atual
- em especial a "sub-Pixar", como é o caso - é
a maneira como os filmes são apenas adaptações
em série de certos padrões clássicos de dramaturgia
para universos diferentes, capazes de reproduzir suas relações
de força principais, mas sempre com novas cores, texturas,
sons e paisagens. Em Rio, temos apenas mais uma representação
do mito de Orfeu - e a lembrança de Orfeu da Conceição,
de Vinícius de Morais, e sua adaptação para
o cinema por Marcel Camus, em Orfeu Negro, é bastante
significativa do tipo de alinhamento buscado pelo filme de Carlos
Saldanha. Orfeu, inclusive, que o cinema de animação
já ressuscitou diversas vezes no passado recente, seja em
A Viagem de Chihiro, de Hayao Myiazaki; A Noiva Cadáver,
de Tim Burton; ou Coraline e o Mundo Secreto, de Henry
Selick. É preciso ir ao inferno para se recuperar o amor
e, enfim, habitar o paraíso. Em Rio, ambos, inferno
e paraíso, são partes conviventes de uma mesma cidade.
O
filme, portanto, não é a obra de exceção
que os corações nativos adorariam que ele fosse. Ao
contrário, a vinda ao Rio - e o encontro fortuito com a origem
de um diretor respeitado pela indústria - é apenas
uma nova forma de manter as engrenagens rodando, e de criar um novo
filme propositalmente parecido com tantos outros, e que será
esquecido com a mesma rapidez. Quem ainda se lembra de O Espanta
Tubarões? O esquecimento, inclusive, é contrapartida
necessária para essa linha de montagem: como os filmes são
apenas novas embalagens para uma mesma estrutura dramatúrgica
que é repetida ad infinitum, é preciso que
essa embalagem seja suficientemente surpreendente em relação
à anterior, mas não marcante o bastante para inviabilizar
sua próxima encarnação. Vai-se ao Brasil porque
o fundo do mar (ou a era glacial; ou Madagascar; etc) já
deixou de ser surpreendente, e as cores do desfile de escola de
samba e das praias cariocas são próximas o suficiente
da vegetação marítima para criar um espaço
reconhecível e abrigar as mesmas situações,
mas também diferentes apenas o necessário para se
criar a ilusão de novidade.
Essas
implicações de projeto não fazem de Rio
um filme necessariamente repudiável ou antipático.
São claras a habilidade e o esmero técnico e tecnológico
característicos da indústria, que Carlos Saldanha
aproxima da estrutura tradicional da chanchada - incluindo seus
números musicais irreverentes e seu absurdo otimismo - produzindo
um micro-choque de mundos também na forma do filme, na convivência
de pontas opostas da ostentação e precariedade. Mas
mesmo esses momentos de alguma graciosidade não conseguem
disfarçar ou distrair da natureza de um filme já visto
muitas vezes, com outros bichos, outras vozes, outros lugares, outras
piadas, mas ainda assim os mesmos bichos, as mesmas vozes, os mesmos
lugares, as mesmas piadas. E para um sujeito que vai ao cinema em
qualquer lugar do mundo que não o Brasil ou o interior do
Minnesota, Rio será apenas mais um desses filmes,
suficientemente diferente para valer o preço de um ingresso,
mas devastadoramente igual para deixar qualquer lembrança.
Rio não é mais do que um bom negócio.
Março de 2011
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