ensaios - especial resnais
Comunicar o que não se comunica Amor,
morte, sexo e memória em Hiroshima Mon Amour por
Fabio Diaz Camarneiro Os corpos no início
de Hiroshima Mon Amour formam uma paisagem estranha, quase abstrata. Estão
eles mortos? A dúvida persiste por poucos instantes, mas é suficiente para criar
um diapasão que se manterá durante todo o filme: as aproximações entre amor e
morte. E, paralelamente a isso, as relações entre vida, memória e esquecimento.
Durante
os primeiros trinta minutos de filme, Resnais recupera um registro que se aproxima
do documentário: imagens (algumas de arquivo) e um diálogo em off: a voz
feminina tentando “narrar” as imagens e a voz masculina repetindo, como num mantra:
“tu n’as rien vu à Hiroshima... rien” (“você nada viu em Hiroshima... nada”).
O registro individual e o coletivo entram em choque: a voz de Emmanuelle Riva
é exterior ao acontecimento, ela é uma “turista” maravilhada com o museu dedicado
à bomba atômica e com as memórias que ele provoca (memórias alheias, tomadas de
empréstimo). Já Eiji Okada é o olhar interior ao fato, alguém que viveu os dias
da bomba atômica – mas que parece tentar esquecer essa lembrança.
O
diálogo dos amantes continua a partir de uma seqüência de imagens das ruas de
Hiroshima que tenta recuperar certa experiência de “estar na cidade”: uma vivência
moderna por natureza, a andança do “flâneur” que vaga sem destino pelas ruas,
recolhendo experiências como quem coleciona algo. É apenas ao final dessa andança
que ele conclui: “uma coisa você viu em Hiroshima... a mim”. Nesse momento, Hiroshima
ao mesmo tempo se aproxima e se afasta de Noite e Neblina. As memórias
da bomba são meros subterfúgios para compreender o que ocorreu ali. Recorremos
à memória na “falta de outra coisa”. O que Riva “viu” em Hiroshima? Viu representações,
reconstituições... rien. Okada, por outra vez, pode ter visto “tudo”, mas
não consegue expressá-lo.
Resnais
cria um paradoxo que não existia em Noite e Neblina: será a experiência
comunicável? Toda a linguagem se baseia na crença de que a resposta seja positiva.
Porém, Resnais lança uma dúvida: a experiência de um ato extremo, como a bomba
ou o holocausto, será comunicável? E a experiência do amor, o êxtase do sexo,
seriam comunicáveis? As situações mais extremas da vida (amor, morte, sexo) estão
em um território obscuro de nossa experiência que resiste à representação. Nasce
aí um território que transcende o fato objetivo e invade a memória subjetiva.
Ao lidarmos com esses limites, precisamos de mais do que o cinema pode fornecer.
Ou, por outro lado, precisamos exatamente de tudo aquilo que o cinema pode fornecer:
uma imagem. Porque as imagens não estão apenas relacionadas com certo índice de
realidade. Elas também ganham novos significados em cada memória que as carrega.
Se o neo-realismo italiano fez do cinema o registro do mundo, uma parte do cinema
moderno lidou com a imagem como registro do imaginário. Resnais trabalha nesse
sentido, e também o Antonioni de Blow-Up: Depois Daquele Beijo.
O
registro individual e o registro coletivo vivem em tensão constante. Os corpos
dos amantes em Hiroshima são também uma memória dos amantes em Nevers (ou seria
o corpo dos amantes em Nevers um prenúncio dos amantes em Hiroshima?). Durante
a ocupação alemã, o problema de Emmanuele Riva é estar apaixonada por um oficial
alemão, um invasor, o agente da morte, o responsável (indiretamente) pelos campos
de concentração. Sob os olhos de Nevers, ela também se transforma em inimiga.
Como poderia ela explicar aquilo que apenas ela, mais ninguém, sente? Novamente,
será tal experiência incomunicável?
Morte
e vida se confundem nos corpos do início do filme, como se Resnais fizesse distinção
entre a vida e a reconstituição da vida. Emmanuelle Riva nada viu em Hiroshima
além de filmes, fotos, de reconstituições. Mas essa memória, tão inútil, também
nos é imprescindível. O mecanismo psicanalítico do luto trabalha assim: recupera
a sensação da perda até que aquilo que se perdeu esteja novamente dentro de nós,
mas rearranjado. Daí que lembrar é também esquecer; relembrar alguma coisa é também
transformá-la em outra coisa. Essa memória, fugidia e transitória,
encontra sua melhor tradução nas ruas da cidade, espaço onde várias experiências
convivem e se mesclam, se confundem. Por isso a importância do nome da cidade
no título do filme. Por isso as seqüências finais se desenvolvem nas ruas, nos
edifícios, nos (des)caminhos de uma noite em Hiroshima. Pessoas surgem e desaparecem,
as certezas cedem lugar às dúvidas, o eterno se transforma em fugidio. As ruas
de Hiroshima são metáfora da memória em si, quando o coletivo e o pessoal se esbarram
e se debatem, tentando conviver.
Ao
final, dois nomes, duas pessoas, duas cidades: Nevers... Hiroshima... Os personagens
existem a partir das cidades em que enfrentaram as conseqüências da guerra. A
experiência nunca pode existir desligada a um local e um tempo. O que é mais transcendente
e impalpável – a memória – nasce do terreno mais fugidio – o tempo. Entre essas
forças, surge o espaço. E, com ele, os nomes, as identidades – a necessidade de
se transmitir, mesmo que precariamente, as experiências humanas: surgem a História
e a Política. Os ecos de Hiroshima Mon Amour se fazem
sentir até hoje. Por exemplo, na cena final de A Questão Humana, de Nicolas
Klotz, em que se ouvem nomes esvaziados de uma história particular, as vítimas
dos campos de concentração, nomes que o holocausto tentou apagar. Em Resnais,
o indivíduo se reencontra ao relembrar seu nome: uma “história redescoberta”.
Essa busca pela história pessoal, de formas muito distintas, parece permear também
outras obras de Resnais. Ao invés de entender o passado como algo estático, Resnais
parece afirmar que a história se modifica cada vez que é narrada (a dramaturgia
de Smoking / No Smoking se debruça sobre esse tema). Também podemos pensar
em como o interesse de Resnais pela tradução da experiência resiste, com uma abordagem
totalmente distinta, em seus filmes mais recentes, de Amores Parisienses
a Medos Privados em Lugares Públicos. Até hoje, Resnais realiza um cinema
que parece admitir sua própria insuficiência (“faute d’autre chose”), mas que
ainda assim persiste na busca de um “nome” (ou uma cidade, ou uma história) que
traduza os mesmos temas de Hiroshima Mon Amour: o amor, a morte e a memória. Setembro
de 2008
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