A Rede Social (The Social
Network),
de David Fincher (EUA, 2010)
por Fábio Andrade
Esse
velho contemporâneo
Há não muito tempo, David Fincher, outrora um símbolo
incontestável de um cinema histérico com as mazelas
de seu espírito pós-moderno, chocou meio mundo com
um surpreendente abraço ao classicismo (e não ao
clássico, a bem dizer) em Zodíaco. No filme
de 2007, o diretor trocava a ansiedade fragmentada em sua incapacidade
de dizer tudo que lhe atravessava a garganta
em o Clube da Luta, e o malabarismo da câmera impossível
de Quarto do Pânico, por planos soberbamente enquadrados
(bem escorados pela fotografia brilhante de Harris Savides), uma
decupagem quase sempre precisa, e uma surpreendente sobriedade
diante da impossibilidade de se determinar fins para uma história
que negava qualquer possibilidade de conclusão. Nesse sentido,
o acolhimento generalizado a este A Rede Social é
facilmente justificável: muitos dos atributos que surgiam
com frescor em Zodíaco reaparecem neste novo filme,
fazendo com que O Curioso Caso de Benjamin Button
possa ser rapidamente descartado como um mero acidente de percurso
neste suposto processo de regeneração do diretor.
Novamente, é notável o cuidado em esquadrinhar o
espaço, o timing bastante preciso na revitalização
da estrutura de diálogos em plano/contraplano, e um tratamento
até certo ponto pessoal a um tema relevante para sua época
- conexão que marca toda sua obra, incluindo Zodíaco.
A Rede Social é um filme bem articulado, de pleno
domínio de linguagem - sim, a faculdade cinematográfica
que há quase meio século Luc Moullet condenava como
castradora a toda arte que mereça ser chamada como tal.
Estranhos são os tempos em que a capacidade de articulação
de uma frase minimamente coerente é algo tão raro
que ela é imediatamente louvada, independente da frase
formada. Pois em toda sua sedutora articulação,
A Rede Social é o esvaziamento sofismático
da techné em habilidade sem espírito, é
o triunfo da ferramenta em uma relação um pouco
mais do que puramente ingênua (e suficientemente mais
maléfica) com o que o filme mostra. Por ser um showroom
das habilidades de David Fincher como articulador, A Rede
Social imprime um olhar determinado sobre sua época
e sobre si mesmo. É justamente aí que suas fragilidades
saltam à vista.
Em primeiro lugar, chama atenção
a relação mimética com o universo abordado:
se A Rede Social é sobre uma nova modalidade de
comunicação, o filme fará todo esforço
para incorporar suas características, mesmo que seja na
tentativa de sabotá-las por dentro. Tal como uma conversa
via Facebook, os diálogos são sequências inflamadas
de oneliners potentes e cheios de si (em dado momento,
Erika Albright, o paraíso perdido de Mark Zuckerberg encarnado
por Rooney Mara, define o sintoma da vaidade do criador do Facebook:
"é como se todo pensamento que você tem fosse
tão interessante que merecesse ser publicado"), em
frases encurtadas pelo limite de caracteres, em uma estrutura
que vai instantaneamente do íntimo ao comunitário,
do monólogo à polifonia, em uma atordoante torrente
de eventos. É como se a tal rede social
que dá título ao filme existisse apartada do resto
do mundo e de comportamentos que já vigoram fora dela.
O
Facebook é visto menos como uma possibilidade de comunicação
e mais como um palco de inúmeros shows solo para uma platéia
cega e surda, mas nunca muda - algo que pode ou não ser
verdade, mas que evidencia Fincher como um sujeito que responsabiliza
as ferramentas (mais uma vez, um cineasta da habilidade) pelo
seu uso, como se elas o determinassem. Nesse sentido, não
é nada irônico que os primórdios do filme
mostrem pessoas que já se comportam à maneira que
a ferramenta viria cristalizar (as redes sociais internas das
universidades, que o site faz apenas ampliar), deixando claro
que Fincher tem enorme dificuldade de perceber o uso de cada elemento
em seu repertório de linguagem: é o espírito
que demanda a ferramenta, não o contrário. Em sua
tentativa de crítica desse caleidoscópico one
man show, Fincher se expõe produto da mesma matéria
que ele critica, não se incomodando em interromper o filme
para se esmerar na decupagem de efeito de uma regata, mesmo que
todo esforço seja sacrificado em uma cena que só
se justifica como tentativa pateta de se fazer uma metáfora
sobre a competição do mundo corporativo.
Essa inadequação
entre matéria (algo bruto e que existe em si) e forma (algo
indissociável à matéria, mas que é
trabalhado pelo artista) leva a uma segunda fragilidade de A
Rede Social, essa de ordem estrutural. Pois em toda sua aparente
sofisticação, A Rede Social padece da necessidade
de cumprir o tortuoso caminho das más biografias, em que
a predestinação à redenção
do sucesso aniquila qualquer possibilidade de acaso, reduzindo
o mundo a um amontoado organizado de causas e efeitos. Não
é à toa que Fincher usa os dois processos jurídicos
como dispositivos para
os arcos narrativos do filme: são eles que justificam a
amarração do filme em seu tatibitati causal, para
que uma prova levantada por um dos advogados possa puxar imediatamente
um flashback da memória, e o filme possa ir de
A a B sem o peso da culpa nas costas. Se temos uma cena de um
rapaz perguntando a Mark Zuckerberg (Jesse Eisenberg) se uma determinada
garota tem namorado, é apenas para mostrar o instante iluminado
em que o gênio grita "eureka!", como se cada frase
solta ao relento fosse a semente instantânea da idéia
de um bilhão de dólares, e toda história
precisasse continuar na veracidade fria das cartelas finais que
apontam para um presente inalcançável a biografias
de tal natureza. Se vemos amarrações idênticas
a essas em um filme como Bruna Surfistinha, de Marcus
Baldini (qual a diferença entre a cena citada e aquela
em que Bruna escolhe seu "sobrenome" de trabalho?),
temos uma dimensão mais exata de sua primariedade.
Mas David Fincher não se contenta em falhar
na aplicação de suas habilidades. Afinal, a ambição
maior de seu cinema está em manter os dedos firmes no pulso
da contemporaneidade, percebendo em Zuckerberg uma nova personagem,
um novo milionário, um símbolo de uma nova ordem
pessoal, social e econômica que o cinema precisa dar conta.
É aí que A Rede Social se torna de fato
uma declaração sobre aquilo que mostra, pois em
todo seu esforço de caracterizar Zuckerberg
como gênio excêntrico - o bilionário que vai
trabalhar de sandálias e que dá maior importância
ao seu próprio rancor do que às suas metas e realizações
- e em toda a relação causal estabelecida pelas
cenas dos tribunais, Fincher toma uma lado muito claro: o dos
advogados. Pois para ele é mais importante
perceber a ironia de um pé na bunda ter levado a uma empresa
bilionária (levou?), e um convite para um clube reservado
ter causado o expurgo de seu primeiríssimo sócio
(causou?), do que compreender que é possível ter
uma idéia bilionária enquanto se toma um porre com
os amigos, por motivos tão banais quanto quaisquer outros.
Se
há uma mudança imposta pela personagem de Zuckerberg,
essa é uma mudança de postura - algo que
o filme nunca está preparado para perceber, quanto menos
para assimilar. Mas Fincher prefere olhar para esse novo milionário
como um velho Charles Foster Kane, nem que para isso seja necessário
lhe inventar sua própria Rosebud (novamente Erika Albright,
que habita o prólogo e o epílogo do filme, reforçando
o aspecto causal da jornada). David Fincher, artesão sofisticado
e trapalhão, se vê diante de uma história
com potencial para Superbad, mas deseja fazer Cidadão
Kane. Nesse delírio de passado, acaba fazendo uma
versão levemente mais íntegra de um Johnny &
June.
Março de 2011
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