Rango (idem), de Gore
Verbinski (EUA, 2011)
por Rafael Castanheira Parrode
Era
uma vez no Oeste...
Nos três primeiros filmes da série Piratas do Caribe,
Gore Verbinski já havia mostrado talento como encenador do
espetáculo, exercitando sua mise en scène
e depurando seu formalismo para tentar elevar a fantasia ao seu
plano máximo, se esquivando o tempo todo de um certo realismo
fantástico e assumindo a farsa como mecanismo principal para
uma experiência diegética e lúdica de cinema,
numa tentativa de se revitalizar um gênero perdido (no caso,
os filmes de pirata). Ali, já se poderia reconhecer no cineasta
um deslumbramento pelo cinema de Sergio Leone e uma tentativa de
se construir o espetáculo através da encenação,
de criar um corpo fílmico, em vez de simplesmente narrar
uma história como outra qualquer. Nesse sentido Rango
é descaradamente o filme em que Verbinski pode ao mesmo tempo
levar adiante seu projeto formal de "cinema espetáculo"
e destilar toda a sua paixão e admiração pelos
westerns spaghetti de Leone.
Pode-se mesmo dizer que Rango propõe
um reencontro do cinema norte-americano com o gênero dos westerns.
Trata-se de uma metáfora, uma vez que o Camaleão de
estimação irá travar uma busca existencial
para encontrar o seu espírito selvagem e descobrir quem ele
realmente é. Premissa um tanto desgastada para um filme de
animação (a do bichinho de estimação
que lançado no mundo irá descobrir a sua essência
animal), entretanto, ela se casa perfeitamente com um requisito
básico do western, que é esse embate entre
o homem civilizado/domesticado e o homem selvagem. Os clichês
de gêneros tão distintos agora se fundem para construir
uma ode a um velho oeste mítico, esquecido por entre as areias
escaldantes do deserto norte-americano. Verbinski celebra esse que
é o gênero americano por excelência, e mostra
o quanto ele ainda pode ser atual e desafiador dentro do cenário
cada vez mais uníssono e domesticado da indústria
de cinema norte-americana.
Nesse
sentido, Rango atravessa um terreno pantanoso em que tenta
se equilibrar entre ser um "filme infantil para a família"
e uma homenagem genuína aos faroestes. Só que uma
vez que o filme se assume deliberadamente como western, construindo
uma narrativa repleta de personagens e cenários completamente
devotos ao gênero, sem medo ou vergonha de soar politicamente
incorreto, o trunfo de Verbinski é o de não fazer
concessões. Em seu universo mítico, ratos, toupeiras
e lagartos disparam armas, fumam cigarros e bebem "suco de
cactos" (nada mais que o poderoso chá alucinógeno
do peiote), postura que tem gerado polêmica por se tratar
de um filme dirigido para o público infantil. A ironia com
que Rango transita entre um desenho animado com bichinhos
falantes - quase que um sub-gênero da animação
contemporânea - e a violência e subversão dos
grandes westerns é um de seus trunfos. O filme não
se intimida em colocar, por exemplo, num primeiro momento uma garotinha-gambá,
curiosa, brincando com uma arma, e mais tarde empunhando duas delas,
pronta para disparar o gatilho contra os malfeitores que roubaram
a última reserva de água que ainda existia na cidade.
Essa postura de certa forma amoral se revela um tanto orgânica,
como se esse comportamento dos personagens fosse indissociável
daquele universo.
Verbinski usa a farsa para a construção do espetáculo.
Por isso, o que Rango propõe desde o princípio
é quase que a negação a uma certa dramaturgia
do cotidiano. O camaleão/ator, que adora ensaiar as peças
intimistas de Shakespeare, será lançado no vórtice
onírico e espetacular do faroeste. Não há mais
espaço para pequenos dramas: Verbinski está em busca
da eloquência, de uma virtuose operística, ritmada,
cheia de excessos, clichês, violência e paixão.
As pinceladas surrealistas, aliadas ao tom fabular, orquestrados
em conjunto com a fisicalidade e a truculência de um gênero
orgânico como o western, acabam conjecturando perfeitamente
a idéia do espetáculo como materialização
do sonho.
Assim,
Verbinski cria um western fabular, e para tanto reúne
todos os elementos clássicos, formais e ideológicos,
tão caros ao gênero. Ao tratar da construção
do mito do homem do oeste, o filme propõe uma reformulação
de valores e ideais que hoje parecem perdidos dentro do panorama
cinematográfico e também, por que não, da sociedade
norte-americana. É quase uma reafirmação daquilo
que Clint Eastwood havia chamado como "única expressão
artística essencialmente americana (além do jazz)".
Por isso, em dado momento do filme, será o próprio
Clint - o eterno homem sem nome - quem irá mostrar a Rango
o caminho a ser trilhado para a revolução, para a
mudança de um mundo árido, cada vez mais atropelado
pela locomotiva desgovernada do progresso. Entretanto, o cavaleiro
solitário - agora num carrinho de golfe abarrotado de estatuetas
douradas -é outro que parece completamente desiludido com
a civilização e o progresso desenfreado, empunhando,
no meio do deserto, um detector de água em vez de sua tradicional
pistola.
Dessa
forma, ao final, Rango, já possuído por esse espírito
do homem do oeste, um legítimo cowboy, irá
se unir a seus velhos inimigos para combater o tirano jabuti que
controla a cidade. É algo que começa como um Quando
Explode a Vingança e termina como Por Um Punhado
de Dólares. A sequência do duelo entre Rango e
o temido Jake Cascavel é quase uma emulação
do duelo entre Clint Eastwood e Jean Maria Volonté no filme
de Leone, com os mesmo planos dos pés, dos olhos, a trilha
sonora gritando Ennio Morricone, a montagem operística, uma
reverência ao espetáculo - a Leone, ao western
e, no fim das contas, ao cinema. E a água, que até
então era desviada para sustentar o progresso e a luxúria
de poucos, agora lava a alma dos pequenos selvagens daquele mítico
oeste em miniatura. Essa água que era usada para abastecer
toda Las Vegas - a meca do entretenimento estadunidense - passa
então a jorrar no deserto onde os bons e velhos cowboys
e selvagens travam a luta para construir a utopia da terra prometida.
Metáfora que soa um tanto potente e subversiva para uma animação
infantil com animais falantes, mas nunca para um genuíno
western norte-americano.
Março de 2011
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