olho no olho
Cinema brasileiro hoje:
debates, fragmentos, idéias
editado por Felipe Bragança

Foram realizados quatro debates dentro da mostra Raízes do Século XXI: cinema brasileiro contemporâneo, que aconteceu entre 14 e 30 de julho, no Rio de Janeiro (e que reuniu uma seleção de longas e curtas produzidos entre 1995 e 2005 no país). Os debates reuniram diretores (Marcelo Gomes, Ricardo Elias, Walter Salles - sob minha mediação), críticos (Alexandre Werneck, Cléber Eduardo, Pedro Butcher, Ruy Gardnier – sob a mediação de Carlos Alberto Mattos), atores (Dira Paes, Fernando Eiras, Simone Spoladore – sob mediação de Pedro Butcher) e técnicos (Marcos Pedroso, Mauro Pinheiro, Paulo Halm, Paulo Sacramento, Valéria Ferro – Alexandre Werneck foi o mediador) do cinema brasileiro.

A partir de trechos recolhidos das mais de 10 horas de material gravado percebemos ser mais interessante um diálogo entrecortado do que uma reprodução realista do que se deu em cada mesa de debate em separado. Criar rimas para além daquelas presentes nos debates isolados. Esta aqui é uma reunião de fragmentos, de idéias, de questões levantadas. Em tempos de urgentes reformulações de perspectivas e de evidente necessidade de uma maior reflexão sobre a incisão cultural e a consistência estética de nossa cinematografia, esta colagem é antes de tudo um convite e um incentivo à troca, ao embate criativo, justapondo e ecoando caminhos que ressoam e se desdobram nas palavras de diretores, críticos, técnicos e atores.

Falar sobre cinema, se encontrar pelo cinema. Rimas estéticas, desavenças.  Lugares comuns e faíscas. Vamos a eles:


1 – Memórias, formações e reações

Walter Salles (diretor)
Hoje eu vejo que há uma recorrência da busca da identidade nos filmes brasileiros da dita “retomada”. Era comum um desejo muito grande de se entender, uma busca de identidade perdida dos personagens, que é também a busca de uma identidade dos realizadores, depois da brutalidade da era Collor.

Ruy Gardnier (crítico)
Quando eu criei a Contracampo, em 1998, eu sentia um certo desprezo pela forma como a crítica de cinema e o cinema eram tratados naquele momento, principalmente nos jornais. Aquele tipo de crítica de jornal obedecia a uma lógica que não me valia. A revista nasce de uma tomada de posição, da vontade de contrapor dois filmes da época: Central do Brasil e Tudo é Brasil. Queríamos fortalecer a visão de Sganzerla, em contraponto a algumas questões desse cinema da “retomada”. A Contracampo nasce da necessidade uma retro-alimentação do pensamento sobre cinema, para nutrir o pensamento e deixar a bola sempre em jogo. Quando a crítica se empedra, ela também envelhece, cria muletas.

Pedro Butcher (crítico)
A geração mais jovem não viu a brutalidade que foi a campanha contra o cinema brasileiro nos anos 80. Era um mau-caratismo mesmo, coisas que de fato afirmavam que “cinema bom” era só o de Hollywood... Eu sou da geração que, quando chegou na redação dos jornais nos anos 90, teve uma tendência a trabalhar a favor, mudar o discurso corrente, dar suporte a uma mudança de rumo... Isso afetou nosso trabalho crítico na época, de certa forma. Essa vontade de combater aquele discurso anterior, às vezes confundia política de afirmação e discussão estética. Ainda que eu ache que a crítica que veio depois, a “jovem crítica”, como a Contracampo, tenha vindo em um refluxo contrário, radical demais, tentando minar o que viam como uma supervalorização... Uma over reaction contrária naquele período, que agora já passou, eu acho, já se assentou.

Ricardo Elias (diretor)
A cobrança é grande e, ao mesmo tempo, poucas vezes somos convidados para discutir estética. O tempo inteiro, me sinto obrigado e cobrado a me confrontar, a me equiparar ou não com o Cinema Novo. Um pequeno grupo até tentou negar o Cinema Novo, para se auto-afirmar... Em meados dos anos 90 era assim – uma forma de fugir da tradição. Como se nós levantássemos os problemas, mas não tivéssemos a capacidade ou a vontade de concluir esses problemas das formas conhecidas. Eu evito apontar soluções nos meus filmes, pensando o filme como uma jornada através da circulação dos personagens, como forma de criar ampliando temáticas e situações que exprimam aquele universo. Apesar disso, quando me perguntam, De Passagem foi muito pensado em torno do Rio 40 Graus.

Marcelo Gomes (diretor)
Meus filmes tratam da dificuldade e da crise de identidade – talvez por eu ter estudado cinema na Inglaterra, escrevendo roteiros em inglês, algo marcante na minha geração – essa sensação de exílio... Voltar ao Brasil para lidar com isso, com a nossa realidade, com a minha língua. Eu comecei a me interessar por cinema nos anos 80, em Recife e a gente decidiu fazer um cineclube para poder ver filmes diferentes: nouvelle vague, cinema novo, neo-realismo... Filmes que não chegavam lá. E foi aí que eu tive minha primeira formação e minhas influências. Foi só assim que eu pude ver muitos dos filmes brasileiros e estrangeiros que não passavam em lugar algum. Minha primeira formação foi ver filmes.

Walter Salles
Naquele momento, do Terra Estrangeira (1995), o que podíamos fazer eram filmes que refletissem essa falta de pátria, de “pai”, de referências. Fazer filmes sobre gerações de pessoas abandonadas. Filmes transformados e tomados por uma realidade social e política que os cercavam – que se chocassem e fossem transformados por esse mundo. A grande maioria dos filmes brasileiros hoje, porém, como, Se eu fosse você – sem tom pejorativo – foram por outro caminho: são filmes que poderiam se passar em qualquer lugar, em qualquer país. Em qualquer latitude.


2 – Preparação, Premissas, Conceitos

Paulo Halm (roteirista)
É preciso entender hoje no Brasil que roteiro não é só narrativa. Começar a fazer um roteiro é fazer conjecturas, é passar tardes pensando, pensando, pensando. Não é apenas redigir uma narrativa audiovisual, mas procurar as especificidades que fazem dessa narrativa algo de interesse audiovisual. O fato do diretor, no Brasil, ser o “autor” do filme, não significa que ele conheça a totalidade do que ele quer fazer. Os diretores tateiam, têm premissas, têm vontades. Cabe ao roteirista ajudar a traduzir esse impulso inicial em algo concreto, tentar decifrar naquele emaranhado de idéias, sons e imagens que está na cabeça do diretor, algo que se ordene e que tenha elementos concretos de dramaturgia. Algo como: “do que você quer falar?”

Marcelo Gomes
Eu escrevi e reescrevi o roteiro do “Aspirinas” e quando faltavam dois meses para filmar, eu joguei o roteiro fora... E recomecei pelos personagens e pelos tempos deles. E a partir daí, dos ensaios, o roteiro se desenvolveu com os silêncios que eu queria. Porque roteiro também é silêncio. Quanto mais clareza o roteiro te dá de onde você quer chegar, mais fácil é percorrer caminhos para ir até lá, podendo traçar diferentes trajetos. O cinema precisa disso.

Walter Salles
Fazer cinema não pode ser um ato de comprovação de uma tese já pré-estabelecida. Fazer cinema tem que ser uma busca... Então, quando o roteiro chega ao limite da cristalização, o melhor é parar de mexer. No Diários de Motocicleta, optamos por deixar o roteiro de lado na etapa final e começamos a fazer seminários sobre cultura latino-americana, sobre os anos 40... Para a equipe toda. Algo tão importante quanto o roteiro é a sincronia da equipe, para que todos, coletivamente, comecem fazendo o mesmo filme, juntos, na hora do set.

Ricardo Elias
Em meus dois filmes eu trabalhei com colaboradores, vários roteiristas, vários tratamentos. Por outro lado, eu acho que há uma supervalorização do roteiro – como aquele ditado: “O diabo pinta tanto o olho do filho, que às vezes ele o fura...” É perigoso mexer e remexer muito numa estrutura de narrativa de que já se gosta, para “melhorá-la”... Isso pode acabar destruindo o processo, perdendo o que se gostava na etapa inicial. É preciso entender quando o filme já passou dessa etapa.

Mauro Pinheiro (fotógrafo)
O roteiro pronto de um filme não significa que ele já esteja maduro para começar a rodar. Eu tenho cada vez mais tentado ter mais tempo de pré-produção. As pessoas não dão muito valor para isso, acham que o fotógrafo tem que fazer uma lista de luz e câmera, ver as locações e só. Enquanto que, se eu passar um mês conversando com o diretor, o filme vai chegar mais perto daquilo que o filme quer ser... A técnica tem de estar a serviço de um conceito. A questão é pensar como isso tem sido feito e determinado os filmes brasileiros. Procuro só falar de equipamento depois de falar muito do conceito do filme. Primeiro de tudo, vem a idéia que norteia o filme.

Marcos Pedroso (diretor de arte)
Eu tive o privilegio de trabalhar com diretores, Marcelo Gomes, Karim Aïnouz, Sérgio Machado, que sempre partiram de um conceito anterior que fez com que a direção de arte do filme fosse um processo conceitual antes de tudo. A primeira etapa da direção de arte é a definição inicial de espacialidade do filme, que às vezes até influencia em mudanças no roteiro, que inclui de texturas de cor a caminhos estilísticos.  Com o Karim, eu chego a fazer pranchas em cartolina estudando a tessitura dos elementos, quais os tons de cor do filme, sequência a sequência, locação a locação. Um trabalho quase abstrato, pra gente entrar no filme de verdade. Diferentemente de A Máquina, do João Falcão, que eu também fiz, mas que foi uma experiência diferente, integrado de um outro sistema de produção, que não tem esse processo.

Fernando Eiras (ator)
Ficamos três meses antes naquela casa, para o Filme de Amor. Um encontro antes da parafernália técnica, antes da equipe chegar. E o Julio (Bressane) dizia: “estamos fazendo esse filme para saber que filme é esse”. A gente vai se aproximando dos personagens, mas não pode ficar pronto antes da hora... O Julio faz tudo para que a coisa não fique pronta antes de filmar... Tem que sempre faltar alguma coisa, que só pode acontecer na hora de filmar.

Simone Spoladore (atriz)
O que pode ser bonito no cinema é romper os limites da filmagem – quando o filme nasce das vivências anteriores, das conversas entre amigos. Ás vezes, anos antes, numa conversa com colaboradores, com o elenco, uma relação de criação se estabelece e desemboca no filme. Não o inverso.

Cléber Eduardo (crítico)
É importante se instalar dentro dos filmes e para isso é preciso aceitar a proposta do filme e lidar com ela. Mas não é sempre que se consegue isso, alguma coisa na própria proposição dos filmes, às vezes, te joga pra fora. O fundamental é ser transparente o suficiente para colocar isso no texto, esse problema, esse processo. Porque às vezes a proposta do filme é cristalina, mas quando você se instala dentro dela, é difícil entender seus motivos. A crítica que não expõe de onde fala e com que regra fala e com que vontade fala, ela é menos crítica. Se o critério é nebuloso, que se deixe isso claro! O crítico não pode estar com os critérios prontos. É preciso se deixar levar pelos filmes, não pelo que se espera deles antes.

Ruy Gardnier
Eu escrevo para entender o efeito estético do cinema. Quando o cinema me toca profundamente, eu sou contra falar “de” filmes, eu tento falar “com” os filmes. E tento fazer com que a forma da minha escrita seja uma conversa com o filme, para que eu seja levado por ele. A forma de encadear e cadenciar planos. Um crítico que só faz grandes análises de discurso ou que consegue usar filmes para analisar sintomas à distância, nunca vai ser um grande crítico.


3 – Filmagem, leveza, caminho: como caminha o cinema?

Ricardo Elias
Quanto mais enxuta a sua estrutura for, mais definida no set, mais tempo você terá para preparar planos e atores. Alguns produtores leram meu roteiro e disseram que não tinha como fazer com Baixo Orçamento, que era um filme “pesado”... Aí eu pensei: será que eu estou simplificando? Que é muito mais complicado do que eu acho? Sentamos, eu e meus assistentes, e elaboramos mil coisas, detalhe a detalhe, para trabalhar com uma equipe mínima, elétrica e maquinaria pequena, tudo. Não sei se funciona para todos os filmes. Mas para mim deu certo. Eu fiz dois filmes pequenos e baratos. Os dois filmes, cada um, em 4 semanas e meia. O mínimo de equipe. Eu sempre repito isso: dirigir, boa parte do tempo, é administrar pessoas e formas de set. Dirigir não é só fazer um plano genial e falar com os atores... Não é só isso.

Mauro Pinheiro
A gente tem vontade de fazer filmes diferentes, por outros formatos, mas existe um modelo de produção no Brasil que é muito reproduzido – tanto para o filme da Xuxa quanto para um filme mais alternativo. Esse processo não é tão diferenciado quanto ele deveria ser. Os orçamentos e o desenho do filme costumam ser feitos por pura especulação dos produtores – não há um diálogo claro entre o orçamento e a realidade criativa de cada filme. Quando a gente começa a falar de fotografia, o técnico de som nunca está junto com a gente, por exemplo... Então qualquer opção de decupagem que lide com o som de forma criativa, não pode se desenvolver. Fica na idéia, para ser discutida depois com o pessoal do som. Porque o formato de produção geral do Brasil não contempla que o técnico de som acompanhe a decupagem. E esse engessamento é geral.

Valéria Ferro (técnica de som)
O técnico de som tem sempre a sensação de pegar o bonde andando – é raro uma discussão sobre a estética sonora do filme. É um trabalho solitário. Mesmo os roteiros, dificilmente constróem elementos sonoros, uma imagem sonora. Isso já é uma tradição do cinema brasileiro – uma tradição de filmes dublados, que criou uma forma de fazer filmes em que a sonoridade era pouco pensada. Como mudar isso?

Walter Salles
O Bazin falava que o cinema deve ser um molde de seu tempo, não “mostrar” o real, mas esposá-lo. Isso é muito mais fácil fazer numa equipe pequenininha, num formato mais leve. No Terra Estrangeira conseguimos trabalhar com uma equipe de 18 pessoas. O filme todo foi feito em quatro semanas. Mesmo no Diários de Motocicleta, em Cuzco, fizemos de tudo para filmar algumas seqüências com 12 pessoas na equipe... Isso permite uma abertura para a incerteza, pro erro, uma interação maior com o espaço e entre as pessoas. Por outro lado, na do leprosário, tivemos que trabalhar com 120 pessoas no set... Só de maquiagem, eram 10 pessoas.

Paulo Sacramento (diretor/montador)
Acho que a gente hoje está numa fase em que há um excesso de especialização no cinema. Eu não gosto. A fotografia precisa entender de montagem, a arte tem que entender de montagem, de som, o montador tem que entender de atuação – é preciso uma troca maior... O mínimo que se saiba do trabalho do outro torna possível essa técnica coletiva que é fazer um filme... Porque eu quero produzir um filme de alguém, dirigir aqui, escrever um roteiro, montar o de outro. Isso acontecia mais antes, essa idéia de coletivismo: Nelson Pereira montou filmes. O Barretão era fotógrafo... Eu acho isso interessante. Hoje em dia esse formato não é levado adiante. Mas acho que pode ser retomado, de alguma forma.

Marcos Pedroso
Pelo menos 40% do trabalho do diretor de arte é uma espécie de política estética no set: é lembrar o diretor sobre opções que fizemos cinco meses antes, nas primeiras conversas. É transitar entre as áreas, para que as variantes não esqueçam as premissas de visualidade que às vezes o diretor pode perder pelo caminho. Eu falo muito no ouvido do diretor, lembrando intenções conversadas, detalhes de espaço e textura. Trabalhar junto com o diretor é isso: porque uma arte que aparece demais pode engolir os atores, a emoção. É um jogo de interesses estéticos que deve ser levado ao longo do filme, dialogando com os espaços do filme e a equipe toda. 

Valéria Ferro
Qualquer elemento técnico que chame a atenção demais em um filme está enganado porque te tira do emaranhado do filme, do emaranhado que deve ser o filme.

Walter Salles
Uma vez perguntaram pro Melville: “Qual o elemento mais importante de um filme, em termos percentuais?...” Ele pensou, pensou e respondeu: “50% é a escolha da história, 50% o roteiro, 50% os atores, 50% o fotógrafo, 50% a música, o som...” E por aí vai. E, se você se enganar em qualquer desses elementos, qualquer dessas partes, você ferrou 50% do seu filme.

Alexandre Werneck (crítico)
A questão é a seguinte: de alguma forma, escrever críticas é buscar a formulação dessa singularidade das obras que vemos – isso nos leva a pensar de que forma a estrutura que difunde e gera as críticas hoje, o espaço que envolve o crítico, permite singularidades na sua feitura. O que se vê hoje são duas tendências do que seja a crítica de cinema e o próprio cinema: de um lado a idéia de uma busca de um padrão de qualidade que serve de parâmetro para indicação de consumo, mais comum nos jornais, como se os filmes tivessem que corresponder a um número de quesitos pra ter “qualidade”; de outro uma crítica mais teórica e reflexiva que tem a ver com o fortalecimento das escolas de cinema, dos festivais, do circuito alternativo e dos filmes brasileiros. Essas duas críticas, esses dois cinemas, quase não se falam.


Parte 2 dos debates



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