ensaio in loco - cobertura dos festivais
Uma questão familiar
por Lila Foster
De Punhos Cerrados (I Pugni
in Tasca),
de Marco Bellocchio (Itália, 1965)
Lifting de Corazón (idem),
de Eliseo Subiela (Argentina/Espanha, 2006)
Chicha Tu Madre (idem),
de Gianfranco Quattrini (Argentina/Peru, 2006)
Assistir sessões seguidas num mesmo dia sempre
gera aproximações entre os filmes vistos. Embora algumas possam
ser um tanto forçadas, foi inevitável não pensar sobre filmes
tão diferentes como De Punhos Cerrados de Marco Bellocchio,
Lifting de Corazón de Eliseo Subiela e Chicha tu Madre
de Gianfranco Quattrini sob a perspectiva do indivíduo em meio
à força das relações familiares.
Se pensarmos numa gradação, De punhos cerrados é o extremo
mais sofrido no qual o molde da família burguesa é violentamente
questionado. Nele (como em boa parte da produção dos anos 60),
o tema da liberdade não deixa de vir à mente – mas, não existe
ali nenhum espaço para ela, nem mesmo metaforicamente. Lifting
de Corazón é o outro extremo: tudo parece ter remediação,
até mesmo os sinais físicos do tempo. O que ele traz da nossa
atualidade é a busca pelo prazer como nova chave de libertação.
Como vivemos numa sociedade mais livre para o consumo e para certos
prazeres essa liberdade acaba nos impondo mais opções e, consequentemente,
uma maior necessidade de escolha. Já Julio César, personagem de
Chicha tu Madre, se encontra no caminho do meio. Sua classe
social, a manutenção diária da subsistência da sua família, parecem
retirar o que a vida poderia ter de encanto. A opressão material
se interpõe a realização dos desejos. Nos três casos, a família
se torna um problema porque limita a força de ação do indivíduo.
O
mais marcante deles com certeza é o primeiro longa-metragem de
Marco Bellocchio, um dos títulos que integra a retrospectiva Cinema
Político Italiano Anos 60 e 70. O cenário é uma casa no interior
da Itália e uma família totalmente desestabilizada. Um irmão mais
velho – o “homem sóbrio” da casa – toma conta de um irmão torturado
pela loucura, uma irmã que alimenta uma relação quase incestuosa
em relação a eles dois, um irmão epiléptico e uma mãe cega. A
comunicação entre eles é quase inviável, tamanha a angústia e
a tensão que envolvem este ambiente familiar. Corpos arqueados,
gritos, reações violentas, brigas, tudo isso fica mais assustador
com um ambiente sufocante e sufocado por objetos pesados, uma
mobília excessiva, coisas velhas guardadas. A decadência do ambiente
junto à loucura de toda família nos mostra a opressão na sua forma
mais violenta, aquela que invade os corpos, impede a formulação
de qualquer projeto ou tentativa de cura. Só existe o tédio, a
reprodução constante do trauma e quase nenhuma possibilidade de
sublimação.
O único que vislumbra alguma forma de mudança é Alessandro e talvez
não seja por acaso que o filme lhe dedica mais atenção. O que
ele almeja é acabar com a fonte de opressão e a morte será o caminho
para isso. No seu percurso tortuoso de libertação, Alessandro
extrapola os limites, mas não sentimos necessidade de julgá-lo.
Antes de tudo o que fica é a negação absoluta da liberdade, a
opressão na sua forma bruta e totalmente indestrutível. Não existe
consciência de nada, somente reações daqueles que se sentem oprimidos
mas que exercem a opressão com força ainda maior. No retrato do
desespero, a família é a fonte primária de opressão e a linguagem
cinematográfica é o seu veículo. De Punhos Cerrados causa
fortíssimo impacto.
Lifting
de Corazón apresenta uma situação familiar completamente diferente.
Antonio Ruiz, um famoso cirurgião plástico, cinquentão em forma,
tem uma família perfeita: uma mulher bonita, uma filha grávida
e um filho adolescente bem comportado. Não será a infelicidade
que o fará então se apaixonar pela belíssima Delia durante um
encontro de cirurgiões em Buenos Aires. A paixão fulminante entre
os dois abala a estrutura do seu casamento e instaura o conflito:
escolher a surpresa e a intensidade do novo ou a segurança e maturidade
do casamento? Na verdade, acaba sendo uma escolha entre duas felicidades,
e é isso que há de mais interessante, a maneira saudável com que
os conflitos são tratados. O triângulo amoroso, a desestabilização,
a mudança trará sim a dor, mas antes de tudo, o que todos buscam
ali é ser feliz. E é isto que vai pontuar os seus momentos assumidamente
brega (frases do tipo: “este será o nosso último adeus”), as emoções
de uma paixão desenfreada e as confusões que todas as traições
implicam. Sem julgamentos, simplesmente revelando a crise de forma
complexa e cheia de graça, Subiela acerta a mão ao tratar dos
desvarios da paixão ao mesmo tempo em que revela a força do amor
maduro. Em alguns momentos, a caricatura pode tirar um pouco a
riqueza de certas situações, mas levando em conta que a aposta
é sempre na alegria, tais excessos se justificam dentro da economia
do filme. No final, fica o retrato de uma família feliz, porém,
sombreada pela imagem de Delia, a jovem amante argentina. Entre
a paixão nova e o amor maduro, Antonio fez a sua escolha – mas
não sem sacrifício.
Chicha tu Madre, uma co-produção argentina-peruana,
acompanha a vida de Júlio César, um taxista na periferia de Lima.
Num movimento muito semelhante ao de Cidade Baixa, de Sérgio
Machado, o filme pretende, mais do que mostrar a transformação
de Júlio César, observar muito atentamente a geografia e as pessoas
do lugar: os puteiros de Lima, o time da segunda divisão, os restaurantes
baratos. Embora a família não exerça uma força opressiva e sufocante,
a transformação do personagem infere o seu abandono. A família
aqui se inclui na lista de prioridades: trabalhar, pagar, comprar,
comer, beber, transar... mas será abandonada em nome de uma nova
vida. Júlio percebe a sua vida como algo pequeno e busca no seu
aprendizado e fascínio pelo tarô um sentido maior para a sua existência.
O significado místico que as cartas dão ao seu cotidiano parecem
indicar o seu caminho: ele vai encontrando pessoas e tentando
ajudá-las com suas leituras.
O
encontro mais bonito é entre ele e uma prostituta, sua nova companheira
nas dificuldades. A narrativa segue e, mesmo sabendo da gravidez
de sua filha, ele vai abrindo mão dos seus compromissos com a
família – gasta dinheiro, rompe com a mulher, vende o seu carro,
faz trambiques para levantar uma grana. As opções aqui assumem
uma outra dimensão. São escolhas de quem não tem muito que escolher,
a vida seguirá difícil da mesma forma. Não existe uma nova paixão
que o arrebata ou uma grande crise, tudo é muito sutil e no final
da projeção fica uma sensação de que assistimos um filme no qual
pouca coisa aconteceu. Este chamado da ação, no entanto, não faz
muito sentido porque, como o diretor afirmou após a sessão, ele
pretendia entender e retratar a vida e os dilemas de uma classe
média baixa cada vez mais empobrecida. A atenção será dada ao
entorno: os ambientes, o linguajar, os objetos e os trejeitos.
Movimento similar é facilmente identificado na nossa cinematografia,
o olhar que pretende entender e descobrir o universo de um “outro”.
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