pariscópio
Questão de cinema
por Eduardo Valente
No ano passado, tive a oportunidade de morar em
Paris por 4 meses e meio, dentro de um programa de desenvolvimento
de projetos de longa-metragem. Naquele período, vi renovado o
meu apetite “cinéfilo” de uma maneira quase juvenil, que me remeteu
aos 14, 15 anos de idade, época em que mais vi filmes na vida
(ainda que a maioria em VHS). Para quem ama o cinema, é uma cidade
sem igual – e a certeza disso, junto com a vontade de dividir
minha felicidade com os amigos do Brasil, me fez escrever na Contracampo
as chamadas “Cartas de Paris”, que de certa forma foram o embrião
que me fez convidar Leonardo Sette, amigo de muitas idas ao cinema
por lá, a manter esta coluna aqui em Cinética.
Um ano depois desta passagem, voltei a Paris por
uma semana. Encontrei a mesma cidade pulsante, acrescida ainda
de uma nova Cinemateca – que acabei não conseguindo conhecer porque,
nada mais francês, ela entrou em greve no exato dia em que fui
visitá-la (mantendo uma maldição de anos, que me impede seguidamente
de conhecer os diferentes prédios da Cinemateca Francesa). Hospedado
justamente na casa de Leonardo, consegui finalmente perceber porque
acho tão importante fazer esta ponte de Paris com o leitor brasileiro
que ama o cinema. Naquela cidade, há muito mais do que uma oferta
avassaladora de filmes em exibição. Existe com o cinema uma relação
transcendental que só pode ser entendida como o sublime que a
arte nos permite viver. Querer escrever sobre isso é natural,
porque é querer dividir este sentimento do sublime com quem nos
lê. E é também sonhar trazer, ainda que por breves parágrafos,
este sublime para o nosso cotidiano. Em uma semana, em suma, eu
me relembrei exatamente quão essencial o cinema é – e como é bonito
vê-lo tratado assim, quase como um ritual.
Pedi licença a Leonardo, e resolvi escrever esta
crônica depois de uma semana de contato com este universo, para
tentar resumir aonde está a diferença de ver cinema em Paris do
resto do mundo:
Questão de Estado – Não nos enganemos,
o cinema “de arte” é hoje um negócio no mundo inteiro, e Paris
não é diferente. No entanto, dentro do circuito especializado
lá existente, há uma recorrência quase infinita de salas que exibem
tão somente filmes “antigos” (a palavra “clássico” carrega significados
demais), assim como outras que exibem (em circuito ou pequenos
festivais/mostras regulares) alguns dos filmes menos comerciais
feitos no mundo. Uma vez que se considere o cinema de fato como
uma arte (sem negar sua vocação como um comércio, mas nunca apenas
como isso), forma-se um circuito chamado de “Arts et essai”, onde
estas salas recebem diferentes formas de suporte e apoio estatal
para que exibam esta programação diferenciada. Ou seja: sabe-se
que não se pode deixar na mão do comércio a decisão do que é ou
não “interessante” exibir, mas também sabe-se que não se pode
esperar da iniciativa privada que aja somente por fins culturais.
Com isso, se por um lado há algumas redes (a principal delas,
a MK2) que funcionam nos moldes dos nossos Estação e Arteplex
(ou seja, lidando com um setor que podemos chamar de “cinema de
arte de comércio”), há várias outras que podem ter um cardápio
que, no Brasil, se resume às poucas salas de instituições culturais
ou cinematecas. Afinal, em áreas estratégicas onde o comércio
não se basta, lá é o lugar do Estado.
Questão de artistas – Se a França é o país que nos deu a “política
dos autores”, a Paris de hoje é o ápice da louvação a eles. Não
é exagero dizer que o nome de um diretor é um atrativo tão ou
mais forte que seus atores. Na França, um filme de Almodóvar tem
lançamentos nas centenas de cópias, simplesmente por causa do
nome dele. Mas, além dos popstars, há um desejo constante de se
acompanhar e compreender a obra de um diretor. Assim é que se
pode sempre ver em cartaz por lá os novos filmes de diretores
como Abel Ferrara, Hou Hsiao-hsien ou Kyoshi Kurosawa (que no
Brasil quase não tiveram filmes exibidos), ou ainda retrospectivas
de diretores (sejam os mais esperados como Godard e Fassbinder
– completas, de suas obras numerosas -, ou outros bem menos comuns
como Edmond Greville e Richard Fleischer, para ficar nos mais
recentes). Também é comum que o lançamento do novo filme de um
“autor” seja acompanhado de uma miniretrospectiva ou do relançamento
de filmes anteriores (no caso recente de Sofia Coppola, além de
seus dois filmes anteriores, foi ocasião de exibir vários trabalhos
de papai Francis). A coisa toma um corpo tão impressionante que
a simples presença de Wong Kar-wai e Monte Hellman como presidentes
de júri em Cannes levaram seus filmes de volta aos cinemas parisienses.
Questão de auto-conhecimento – O cinema
francês está constantemente em cartaz em Paris. Para além do circuitão,
onde uma nova leva de comédias têm elevado sensivelmente a participação
de mercado dos filmes locais, há uma presença constante do passado
do cinema francês em exibição. O espectador pode ver na mesma
semana filmes como One Plus One, de Godard, ou Playtime,
de Jacques Tati – isso sem precisar ir a nenhuma obscura cinemateca
ou sala poeira. Não se quer aqui dizer que não aja inúmeros problemas
na lógica produtiva, comercial ou mesmo espectatorial do cinema
francês (muitos deles repetindo questões bem familiares nossas)
– mas sim que é impensável na Paris do século XXI que uma revista
possa apregoar, como fez há poucos meses a nossa Época, que o
cinema nacional tem uma história quase desprezível. Saber do seu
passado, saber reconhecer-se no espelho é condição sine qua
non para construir sua expressão cinematográfica.
Questão de educação – No meu último dia
em Paris, fui a uma sessão de O Homem das Novidades, que
seria apresentada com música ao vivo. Sessão de 16h de um domingo
ensolarado e quente, num cinema deste circuito bem mais alternativo
– não esperava mais do que os cinéfilos de sempre. Surpresa minha
ao chegar na sala: sem nenhuma “obrigação escolar”, uma sala praticamente
toda tomada por pais que levavam seus filhos de sete, oito anos.
Do meu lado, inclusive, sentou um garoto de seus dez anos que,
quando a apresentadora anunciou o filme de Buster Keaton e perguntou
se alguém ali conhecia o ator, levantou a mão empolgado, citando
A General e Sherlock Junior. Não se trata aqui da
anedótica superioridade de um primeiro mundo inatingível (aquela
que diz, por exemplo, que lá as crianças de três anos falam francês),
mas de uma crença na importância da arte, e do cinema, na educação
de uma criança – e entendida como fruição, como prazer, não como
obrigação nem punição. Esta mesma criança se torna o adolescente
com acesso a um manancial de filmes praticamente inesgotável e
ao estudante futuro (tão visto nas outras sessões), que pode ver
um Max Ophuls ou um Vincent Minelli no cinema todo dia. Porque
este é o seu hábito.
Em Paris, mais do que qualquer outra coisa, sente-se
simplesmente que o cinema está vivo, e que não é matéria de museu
ou de cultores obscuros. Não é nada mal viver este sentimento.
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