Querô,
de Carlos Cortez (Brasil, 2006) por Cléber
Eduardo Mais
cinema que Plínio Marcos
As adaptações para cinema de textos de Plinio Marcos, das melhores
às piores, tendem a manter-se restritas pelo espaço teatral. Mesmo que generalizando
em relação a essas transposições, percebe-se nelas a opção por ações confinadas
em determinados cômodos (menos ou mais amplos), com personagens reagindo ao emparedamento
(não apenas físico), esperneando em suas imobilidades e impossibilidades. Os movimentos
desesperados de seus corpos são, em geral, limitados pelos ambientes estreitos
e as palavras nos chegam tão iradas quanto respeitosas com o vocabulário do autor,
quase com espírito de homenagem, a nos lembrar que aquilo é Plinio Marcos antes
de ser uma narrativa de cinema. Esse é o significativo diferencial
buscado por Querô, estréia em longa-metragem de Carlos Cortez, que, na
própria escolha dessa peça menos confinada (fisicamente), em vez de bater continência
para a familiaridade mais imediata com o universo do dramaturgo, extrai dele apenas
o que interessa ao cinema. Seu filme nos dá a ver um relato com regras próprias
de organização espacial e verbal, sem contrato de fidelidade mimética com o original
– ainda que, de acordo com alguns críticos, as relações entre alguns personagens
prenda-se a noção de marginalidade dos anos 70. Apesar dessa eventual restrição
de passagem do papel para as telas, diante das imagens de Querô, de sua
narrativa forte e ágil, de seus deslocamentos pela cidade baixa em Santos, de
seu ciclo pelo inferno carcerário, não temos apenas uma evocação de Plinio Marcos:
podemos ver um filme que parte do autor sem ter a tarefa de ficar preso a ele,
inclusive atualizando suas expressões em vez de eternizá-las historicamente. Mais
importante que Plinio Marcos, para o filme, é o cinema. Cortez
estréia na ficção com alto investimento no plano-sequência virulento e nos cortes
incumbidos de riscar a vista, com predominância da agilidade sobre a retenção
de momento – o que é, nos momentos climax, potencializado por um desenho de som
(de Ricardo Reis) à altura da contundência dos acontecimentos. Podemos encontrar
nas proximidades da América Latina outras variações dessa modalidade estética,
que vão de Sicário (1994), produção venezuelana do uruguaio Juan Ramon
Novoa, e Pizza, Birra Faso (1997), produção argentina dirigida pelo também
uruguaio Adrian Caetano, em parceria com Bruno Stagnaro, com a aposta em um realismo
dotado de brutalidade na linguagem para captar a vivência de adolescentes desgarrados.
Na genealogia de formas e temas, certamente, uma das matrizes é Os Esquecidos,
de Luis Buñuel, assim como Pixote, de Hector Babenco, com uma voltagem
formal mais alta, porém. Mas, acima de tudo, o parentesco
mais próximo do filme é mesmo com o cinema brasileiro recente. Querô tem
uma movimentação de câmera, variações de luz e um investimento na montagem adrenalinada,
que, se não são opções tão racionalizadas para constituir um diálogo dentro de
uma perspectiva histórica (os filmes dos anos 90 e 2000), revelam sintonia com
outras escolhas estilísticas, integrando o caldo estético de seu contexto mais
imediato. O filme alinha-se à vertente “realismo de impacto” da produção contemporânea,
que tem como marcos (com todas as suas diferenças) Bicho de 7 Cabeças,
de Lais Bodanski; Cidade de Deus, de Fernando Meirelles; O Invasor,
de Beto Brant; Contra Todos, de Roberto Moreira; Cidade Baixa, de
Sergio Machado; e o mais recente Antônia, de Tata Amaral – a imensa maioria
deles de realizadores paulistas (exceto Machado), calcados em uma mise-en-scéne
orgânica, pulsante, a exalar uma energia de cinema jovem, empenhado em propor
uma experiência de choque. Excetuando
a narração no começo, um monólogo com a mãe morta e trechos de alguns diálogos,
que destoam do cinema de experiências diretas ao qual se vincula o filme e fornecem
bulas verbais sobre os buracos emocionais do protagonista, Querô é antes
de mais nada um filme físico, com a câmera próxima dos corpos e os corpos em permanente
risco. Não falemos em estética da fome, porque ela é fruto de um contexto específico,
mas, aos poucos, com a soma dos filmes, percebemos a consolidação de uma estética
da síncope, com o olho do filme piscando, arregalando, vasculhando os espaços
com velocidade, sem necessariamente encontrar o alvo. Esse estilo, se evidencia
e parece desejar fixar uma marca (autoral e de época, os anos 2000), pode também,
pelo acúmulo em poucos anos, se tornar uma saída fácil. Há um risco de formatação
dessa dinâmica de câmera e de cortes, como pudemos ver no primeiro episódio da
série Antônia, dirigida por Luciano Moura e como Eduardo Valente apontou
na crítica sobre o longa Antônia, de Tata Amaral.
Mas, por enquanto esse risco de padronização faz fronteira com uma busca da justa-imagem.
Quem está a frente desse campo de atritos é um adolescente
orfão, Gerônimo no registro, Querô para os amigos, Querosene para quem deseja
provocá-lo, filho de prostituta, criado por cafetina, um bandidinho da zona portuária,
que vai preso, bate, apanha, fere e é ferido, foge, apaixona-se por uma mocinha
evangélica e é tragado de volta para o crime, depois de cumprir o projeto de ter
sua própria arma para dar o troco ao mundo. O cinema do ressentimento, sobre o
qual já escreveu e já falou o pesquisador Ismail Xavier, aqui atinge um dos mais
altos graus de explicitude. Nesse sentido, Cortez, ao optar por esse material
e por esse tratamento, não se alia a, digamos, uma tendência contemporânea: a
das representações dos andares baixos e do subsolo da pirâmide social a partir
das trajetórias vitoriosas de protagonistas com alguma habilidade especial, capazes
de tirá-los de seus ambientes asfixiantes ou de pelo menos ajudá-los a sobreviver
a eles. Em Querô, o buraco é mais embaixo. A distopia é a regra permanente.
Amparado pela aparentemente trabalhosa produção de Fabio
e Caio Gullane, que demonstram aqui abertura para propostas de maior contundência,
Cortez tem a seu favor um elenco de rapazes com fúria cênica, que dominam os palavrões
e gírias, de forma sempre naturalista, crescendo na imagem quando fixam na câmera
seus olhares rípidos, prontos para matar ou morrer. Ainda entre as interpretações,
é preciso reverenciar, sem economia, o magnetismo de Angela Leal, que, em três
ou quatro momentos nos quais entra em quadro, deixa sua marca com um vozeirão
dilacerante. Em um filme pontuado pela caça às revelações jovens – e elas acontecem
anualmente no cinema da geração estreada em longas nos últimos 10 anos -, uma
veterana revela-se ainda altiva e potente.
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